A Herança Que Nunca Veio: Entre o Amor e a Injustiça Familiar

— Não pode ser, mãe! — gritou o Rui, com a voz embargada, enquanto a sala se enchia de um silêncio pesado. Eu estava sentada ao lado dele, as mãos frias e suadas, sentindo o coração a bater tão forte que parecia querer saltar do peito. A minha sogra, Dona Teresa, olhava para nós com aquele olhar duro, de quem já tomou a decisão há muito tempo e não vai voltar atrás.

O advogado fechou a pasta devagar, como se quisesse dar tempo à notícia de assentar. O meu cunhado, o Pedro, mantinha-se calado, mas não conseguia esconder um leve sorriso de vitória. O testamento era claro: a casa de família, onde o Rui cresceu, onde passámos tantos natais e aniversários, ficava para o Pedro. Ao Rui, nem uma palavra, nem um objeto, nem sequer uma fotografia.

Senti-me traída. Não só por ela, mas por toda a família. Como é possível? O Rui sempre foi o filho mais presente. Quando o pai morreu, foi ele quem ficou ao lado da mãe, quem cuidou dela, quem a levou às consultas, quem passava os domingos a arranjar o jardim. O Pedro, por outro lado, sempre distante, só aparecia quando precisava de dinheiro ou de um favor. E agora, era ele quem ficava com tudo.

— Mãe, porquê? — insistiu o Rui, a voz agora mais baixa, quase um sussurro. — O que é que eu te fiz?

Dona Teresa não respondeu de imediato. Olhou para mim, como se eu fosse a culpada de tudo aquilo. — Tu sabes bem porquê, Rui. Eu não quero discutir isto outra vez.

O Pedro levantou-se e saiu da sala, como se já não houvesse mais nada a dizer. O advogado despediu-se, constrangido, e nós ficámos ali, sentados, sem saber o que fazer. O silêncio era tão denso que quase doía.

Quando finalmente saímos, o Rui não disse uma palavra. No carro, olhava pela janela, os olhos vermelhos de raiva e tristeza. Eu tentei tocar-lhe na mão, mas ele afastou-se. Senti-me impotente. O que podia eu fazer? O que podia eu dizer?

Chegámos a casa e ele foi direto para o quarto. Fechou a porta com força. Fiquei na sala, a olhar para as fotografias da nossa família, a pensar em tudo o que tínhamos feito por aquela mulher. Lembrei-me das tardes em que a levava ao mercado, das vezes em que lhe fazia companhia quando estava doente. E agora, tudo aquilo parecia não ter significado nenhum.

No dia seguinte, a notícia já corria pela aldeia. A vizinha do lado, a Dona Amélia, veio logo bater à porta.

— Então, menina Sofia, já soube da novidade? Que injustiça, minha querida! O Rui não merecia isto…

Eu sorri, sem vontade, e agradeci. Mas por dentro sentia-me cada vez mais revoltada. Como é que as pessoas podiam ser tão cruéis? Como é que uma mãe podia virar as costas a um filho assim?

Os dias passaram e o Rui foi-se fechando cada vez mais. Já não falava comigo, evitava os amigos, deixou de ir ao café. Eu tentava animá-lo, mas sentia que estava a perder o marido para uma tristeza sem fim.

Uma noite, não aguentei mais. Entrei no quarto e sentei-me ao lado dele.

— Rui, tens de falar comigo. Não podemos deixar que isto nos destrua.

Ele olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas.

— Sofia, eu sinto-me um inútil. Sinto que nunca fui suficiente para a minha mãe. E agora… agora nem sei quem sou.

Abracei-o com força. Queria protegê-lo daquela dor, mas sabia que não podia. Aquela ferida era demasiado profunda.

As discussões começaram a surgir entre nós. O dinheiro fazia falta. A casa onde vivíamos era pequena, alugada, e sempre sonhámos em um dia poder comprar a nossa própria casa. Agora, esse sonho parecia cada vez mais distante. O Pedro, por sua vez, começou a fazer obras na casa da mãe, como se quisesse apagar todas as memórias do Rui ali dentro.

Um dia, encontrei a Dona Teresa no mercado. Ela fingiu que não me viu, mas eu fui ter com ela.

— Dona Teresa, posso falar consigo?

Ela olhou-me de cima a baixo, fria.

— Não tenho nada para lhe dizer, Sofia.

— Só queria perceber… Porquê? O Rui não merecia isto.

Ela suspirou, cansada.

— O Rui fez as suas escolhas. Casou consigo, afastou-se da família. O Pedro sempre esteve mais próximo de mim.

Fiquei sem palavras. Como é que ela podia dizer aquilo? O Rui afastou-se porque ela nunca aceitou o nosso casamento. Porque sempre achou que eu não era boa o suficiente para o filho dela. E agora, usava isso como desculpa para o castigar.

Voltei para casa a chorar. O Rui tentou consolar-me, mas eu sabia que ele também estava destruído por dentro.

Os meses passaram e a relação entre nós foi-se deteriorando. A dor da injustiça corroía-nos por dentro. Começámos a discutir por tudo e por nada. O dinheiro, a casa, o futuro… Tudo parecia incerto.

Um dia, recebi uma carta do Pedro. Dizia que ia vender a casa e que tínhamos de ir buscar as coisas do Rui. Fomos lá juntos, em silêncio. Cada divisão era uma recordação. O quarto do Rui ainda tinha os posters de futebol na parede, os livros da escola, as fotografias de família. O Rui chorou como uma criança. Eu abracei-o, mas sentia-me impotente.

No fim do dia, saímos de lá com duas caixas de recordações e um vazio no peito impossível de preencher.

O tempo passou. O Pedro vendeu a casa e mudou-se para Lisboa. A Dona Teresa ficou sozinha, numa casa pequena, longe de tudo e de todos. O Rui nunca mais lhe falou. Eu tentei perdoar, mas nunca consegui esquecer.

Hoje, olho para trás e pergunto-me: valeu a pena tudo isto? Uma casa pode valer mais do que o amor de um filho? Será que alguma vez vamos conseguir sarar esta ferida?

E vocês, já sentiram esta dor de injustiça dentro da própria família? Como se ultrapassa uma traição destas?