Mentiras ao Amanhecer: O Silêncio Entre Nós

— Vais outra vez para as “pescas”, não é? — perguntei, a voz presa entre a raiva e o medo, enquanto ele enfiava a velha camisola de flanela e atirava a mala das canas para o banco de trás do carro.

Ele nem olhou para mim. — Sim, Mariana. Preciso de um tempo para mim. Volto amanhã.

O cheiro a gasolina misturava-se com o perfume barato que ele usava desde sempre. Mas agora, aquele aroma parecia-me estranho, quase ofensivo. Fechei a porta devagar, sentindo o estômago a dar voltas. O silêncio da casa era ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava 7h12. Mais um sábado sozinha.

Durante meses, aceitei as suas desculpas. “As carpas estão a morder melhor ao fim de semana”, dizia ele, com um sorriso cansado. Chegava a casa sem peixe, mas com filetes do supermercado embrulhados em papel pardo, fingindo que eram frescos do rio. Eu fingia acreditar. Talvez por medo de enfrentar a verdade, talvez por amor ao que já não existia.

A rotina tornou-se um ritual de solidão. Eu arrumava a casa, passava a ferro as camisas dele, preparava o jantar para dois e comia sozinha. Oiço o eco dos meus próprios passos no corredor. Os nossos filhos, o Tiago e a Sofia, já tinham saído de casa. Restava-me o vazio e a dúvida.

Foi a Dona Rosa, a vizinha do terceiro esquerdo, quem me abriu os olhos. Uma tarde, enquanto regava as plantas na varanda, ela aproximou-se, hesitante.

— Mariana, desculpa meter-me, mas… vi o teu marido no café da rotunda, há dois sábados. Não estava sozinho. Estava com uma mulher, loira, mais nova. Pareciam… próximos.

Senti o chão fugir-me dos pés. O coração disparou. Quis gritar, chorar, mas limitei-me a agradecer com um aceno de cabeça. Fechei a porta e desabei no sofá. As peças do puzzle encaixavam-se: as ausências, as desculpas, o perfume diferente. O meu casamento era uma mentira.

Durante dias, vivi num limbo. Observava-o em silêncio, à procura de sinais. Ele evitava o meu olhar, falava pouco, e quando o fazia, era sobre trivialidades: o preço do gasóleo, o Benfica, o tempo. À noite, virava-se para o lado e adormecia em segundos. Eu ficava acordada, a olhar para o tecto, a imaginar onde estaria ele realmente.

Na sexta-feira seguinte, tomei uma decisão. Ia confrontá-lo. Preparei o jantar favorito dele — arroz de pato — e esperei. Quando chegou, largou as chaves na mesa e sentou-se à mesa sem uma palavra.

— António, precisamos de falar.

Ele suspirou, como se já soubesse o que vinha aí.

— O que foi agora, Mariana?

— Não me mintas mais. Sei que não vais pescar. Sei que tens estado com outra mulher.

O silêncio caiu pesado entre nós. Ele olhou-me finalmente nos olhos, e vi ali uma mistura de culpa e desafio.

— Quem te disse isso?

— Não interessa. Quero saber a verdade. Tens outra pessoa?

Ele hesitou, passou as mãos pelo cabelo, e finalmente murmurou:

— Tenho. E já não sei o que sinto por ti.

O mundo desabou. Senti-me pequena, ridícula, enganada. As lágrimas correram-me pelo rosto, mas não gritei. Não lhe dei esse prazer.

— Há quanto tempo? — perguntei, a voz trémula.

— Uns meses. Conheci-a no trabalho. Não planeei nada disto, Mariana. As coisas entre nós já não estavam bem há muito tempo.

— E os nossos filhos? E tudo o que construímos?

Ele encolheu os ombros, incapaz de me encarar.

— Não sei. Sinto-me perdido.

Nessa noite, dormi no quarto da Sofia. O cheiro a infância, a bonecas esquecidas, misturava-se com a dor da traição. Passei horas a recordar os primeiros anos do nosso casamento: as férias em Vila Nova de Milfontes, os jantares à luz das velas, os risos partilhados. Onde é que nos perdemos?

No sábado, ele saiu cedo, sem se despedir. Fiquei sozinha, a olhar para as paredes, a tentar perceber o que fazer da minha vida. Liguei à Sofia, mas não consegui contar-lhe. O Tiago estava em Londres, longe demais para partilhar esta dor.

Os dias seguintes foram um tormento. António começou a passar cada vez menos tempo em casa. Trazia roupas lavadas, mas o cheiro a perfume feminino denunciava-o. Um dia, encontrei um brinco dourado no carro dele. Não era meu. Não era da Sofia. Era dela.

A raiva deu lugar à tristeza, e depois à aceitação. Comecei a sair mais, a ir ao café com a Dona Rosa, a passear pelo parque. Aos poucos, fui recuperando pedaços de mim que tinha perdido ao longo dos anos. Inscrevi-me num curso de pintura, algo que sempre quis fazer e nunca tive coragem.

Um domingo à tarde, António apareceu em casa de surpresa. Trazia um ar cansado, envelhecido.

— Mariana, podemos falar?

Assenti, sem emoção.

— Vou sair de casa. Vou viver com a Ana. Não quero prolongar isto mais. Mereces alguém que te faça feliz.

Não chorei. Não implorei. Apenas disse:

— Espero que encontres o que procuras. Eu vou ficar bem.

Ele saiu, e pela primeira vez em meses, senti um alívio estranho. A casa parecia maior, mais luminosa. Liguei à Sofia e contei-lhe tudo. Chorámos juntas ao telefone, mas ela apoiou-me.

Os meses passaram. O divórcio foi difícil, mas libertador. Os amigos dividiram-se, alguns culparam-me, outros apoiaram-me. A família do António deixou de me falar. Mas eu segui em frente. Fiz novas amizades, viajei sozinha até ao Douro, pintei quadros que vendi numa feira local.

Hoje, olho para trás e vejo uma mulher diferente. Mais forte, mais livre. Ainda dói, às vezes, mas aprendi a viver com as cicatrizes. O António liga de vez em quando, fala dos filhos, da vida dele. Eu ouço, mas já não me magoa.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas a mentiras por medo de ficarem sozinhas? Quantas de nós sacrificam a própria felicidade para manter as aparências? Talvez esteja na altura de falarmos sobre isto, sem vergonha, sem culpa. E vocês, o que fariam no meu lugar?