Entre o Amor do Meu Pai e o Meu Próprio Caminho: O Peso das Expectativas
— Filipa, não me obrigues a tomar medidas drásticas. — A voz do meu pai ecoou pela sala, dura como pedra. — Já tens trinta e dois anos. Quando é que vais finalmente dar-me um neto?
Senti o sangue gelar-me nas veias. A minha mãe, sentada ao lado dele, mantinha o olhar baixo, as mãos apertadas no colo. O relógio de parede marcava as oito da noite, mas o tempo parecia suspenso, como se o mundo inteiro estivesse à espera da minha resposta.
— Pai, já falámos sobre isto — tentei manter a voz firme, mas tremia. — Eu e o Miguel ainda não decidimos se queremos filhos. Não é assim tão simples.
Ele levantou-se de repente, empurrando a cadeira para trás com um estrondo. — Não é simples? Eu trabalhei a vida toda para vos dar tudo! E agora tu, a minha única filha, recusas-te a continuar o nome da família? Achas que isto é justo?
O Miguel, ao meu lado, pousou a mão na minha perna debaixo da mesa. Era um gesto pequeno, mas naquele momento foi tudo o que me impediu de desabar. O meu pai sempre foi assim: autoritário, intransigente, convencido de que só havia uma maneira certa de viver — a dele.
Aquela noite foi só mais uma de muitas. Desde que terminei o curso de Direito e comecei a trabalhar num escritório em Lisboa, o meu pai nunca escondeu o desagrado por eu não ter seguido o caminho “normal”: casar cedo, ter filhos, ficar perto da família em Coimbra. Para ele, tudo o que fugisse à tradição era uma afronta pessoal.
Lembro-me de uma tarde de verão, há uns anos, quando lhe disse que queria viajar pelo mundo antes de assentar. Ele riu-se na minha cara. — Isso são ideias de gente que não sabe o que quer da vida. Tu és portuguesa, Filipa. Aqui, a família vem sempre primeiro.
Mas eu sempre quis mais. Quis ver o mundo, conhecer pessoas diferentes, desafiar-me. O Miguel foi o único que me compreendeu. Conhecemo-nos num festival de jazz em Cascais. Ele era diferente dos rapazes que o meu pai aprovava: artista, sonhador, com uma calma que me fazia sentir segura. Apaixonei-me por ele e, contra todas as expectativas, fomos viver juntos.
No início, tentei esconder do meu pai. Mas em Portugal, os segredos não duram muito. Quando ele soube, fez-me prometer que pelo menos casaria depressa e teria filhos. Eu prometi, mas sem convicção. E agora, anos depois, cá estávamos: ele a exigir, eu a hesitar.
— Se não queres fazer parte desta família, diz-me já. — A voz dele cortou-me os pensamentos. — Não vou continuar a sustentar uma filha ingrata.
A ameaça pairou no ar. O meu pai ajudava-nos com parte da renda do apartamento. O Miguel trabalhava como freelancer e os meus rendimentos eram incertos. Sabia que, se ele cumprisse a ameaça, teríamos de mudar tudo.
— Pai, não é justo — disse, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Não podes comprar a minha vida. Não podes obrigar-me a ser mãe só porque tu queres.
Ele virou-me as costas. — Então prepara-te para viver com as tuas escolhas.
Nessa noite, não dormi. O Miguel tentou acalmar-me, mas eu sentia-me perdida. Cresci a ouvir que família era tudo. Que os pais sabiam sempre o que era melhor. Mas e se o melhor para eles não era o melhor para mim?
Os dias seguintes foram um tormento. O meu pai deixou de me atender o telefone. A minha mãe ligava-me às escondidas, chorosa. — Filipa, fala com o teu pai. Ele está magoado. Só quer o teu bem.
Mas o que era o meu bem? Ter um filho só para agradar? E se nunca sentisse esse desejo? E se acabasse a culpar o meu filho por uma escolha que não era minha?
No trabalho, não conseguia concentrar-me. Os colegas notaram. A Ana, minha amiga de infância, levou-me a almoçar e ouviu-me desabafar.
— Filipa, tu tens de viver a tua vida. Os nossos pais cresceram noutro tempo. Mas tu não és obrigada a sacrificar-te por eles.
— Mas e se eu me arrepender? E se perder a família?
Ela apertou-me a mão. — A tua família devia amar-te pelo que és, não pelo que fazes.
As palavras dela ficaram comigo. Mas o medo era maior. O Miguel sugeriu que procurássemos ajuda. Fomos a uma terapeuta de casal. Pela primeira vez, disse em voz alta: — Tenho medo de perder o meu pai. Mas também tenho medo de perder a mim mesma.
A terapeuta olhou-me nos olhos. — Filipa, o amor verdadeiro não impõe condições. O seu pai está a tentar controlar a sua vida porque tem medo de perder o que conhece. Mas a sua felicidade não pode ser moeda de troca.
Saí daquela consulta mais leve, mas ainda cheia de dúvidas. O Miguel apoiava-me, mas eu via o cansaço nos olhos dele. — Não quero que escolhas entre mim e o teu pai — disse-me uma noite. — Mas também não quero viver uma vida que não é nossa.
As discussões em casa começaram a aumentar. O dinheiro começou a faltar. Tivemos de mudar para um apartamento mais pequeno. O meu pai não cedeu. A minha mãe continuava a ligar-me, cada vez mais desesperada.
— Filipa, por favor. O teu pai está doente do coração. Não lhe dês mais desgostos.
Senti-me culpada. Egoísta. Mas também revoltada. Porque é que o amor tinha de doer tanto?
No Natal, decidi ir a Coimbra. Queria enfrentar o meu pai, acabar com aquele silêncio. Quando entrei em casa, ele estava sentado na sala, mais magro, mais velho. Olhou para mim sem sorrir.
— Vieste pedir desculpa?
Sentei-me à frente dele. — Não vim pedir desculpa por ser quem sou. Vim dizer-te que te amo, mas não vou viver a tua vida. Quero que me aceites, mesmo que não te dê netos.
Ele não respondeu. Ficámos ali, em silêncio, durante minutos que pareceram horas. Finalmente, ele suspirou.
— Sempre foste teimosa. Igual à tua mãe.
Sorri, apesar das lágrimas. — Talvez seja por isso que ainda estou aqui.
Não foi um final feliz. O meu pai não mudou de ideias. Ainda hoje, a nossa relação é feita de avanços e recuos, de silêncios e pequenos gestos de reconciliação. Mas aprendi que o amor não pode ser uma prisão.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós sacrificam os próprios sonhos para não desiludir quem amam? Será que algum dia conseguimos ser verdadeiramente livres das expectativas da nossa família?