Um Minuto de Atraso: A Minha Vida com a Sogra, a General

— Outra vez atrasada, Sofia? — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. O relógio marcava 7h01. Um minuto. Um minuto apenas, e já sentia o peso do olhar dela sobre mim, como se tivesse cometido um crime imperdoável.

Sentei-me à mesa, tentando ignorar o cheiro intenso do café acabado de fazer e o nervosismo que me apertava o estômago. O Rui, meu marido, folheava o jornal, fingindo não ouvir. Mas eu sabia que ele ouvia tudo. Sabia que cada palavra da mãe era uma pedra lançada entre nós.

— Desculpe, Dona Lurdes. O despertador não tocou — murmurei, sabendo que a desculpa não ia colar.

Ela bufou, ajeitando o avental com um gesto brusco. — Na minha casa, pontualidade é respeito. Se não consegue levantar-se a horas, como vai cuidar de uma família?

O Rui ergueu os olhos do jornal, hesitante. — Mãe, deixa lá a Sofia. Foi só um minuto…

— Um minuto hoje, cinco amanhã. É assim que começa a desordem — cortou ela, sem sequer olhar para ele. — No tempo do teu pai, ninguém se atrasava. Nem para o pequeno-almoço, nem para a vida.

A vergonha queimava-me as faces. Tinha 29 anos, era licenciada em Psicologia, mas ali, naquela casa, sentia-me uma criança desastrada. Desde que me tinha mudado para a casa dos pais do Rui, depois de perder o emprego e não conseguirmos pagar a renda do nosso apartamento em Lisboa, a minha vida tinha-se transformado numa sucessão de pequenas humilhações.

A Dona Lurdes era uma mulher de ferro, viúva de um sargento do exército, e fazia questão de manter a ordem militar em tudo. As toalhas tinham de estar dobradas de certa maneira, os pratos arrumados por tamanho, as janelas abertas à mesma hora todos os dias. E eu, que sempre fui um pouco distraída, tropeçava em todas as regras.

Naquela manhã, enquanto mexia o café, ouvi-a resmungar baixinho:

— No tempo da minha juventude, as mulheres sabiam o seu lugar…

A colher tremeu-me na mão. O Rui pousou o jornal e tocou-me no braço, num gesto de apoio silencioso. Mas eu sentia-me sozinha. Tão sozinha.

Depois do pequeno-almoço, fui para o quarto arrumar a roupa. O armário era pequeno, metade ocupado pelas roupas antigas do Rui, que a mãe dele se recusava a deitar fora. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que tudo nela era permanente, inamovível? Porque é que eu tinha de ser sempre a intrusa?

À noite, depois do jantar, a Dona Lurdes sentou-se no sofá com o croché. O Rui tentava ver o telejornal, mas ela não parava de comentar:

— Olha para isto, mais um político a roubar. No meu tempo, havia respeito. Agora é tudo uma bandalheira. E as mulheres? Só querem saber de carreira, de liberdade…

Olhou para mim de soslaio. Eu sabia que era para mim. Sempre era.

— Sofia, já pensaste em procurar outro trabalho? — perguntou, com aquele tom passivo-agressivo que me fazia querer gritar.

— Tenho enviado currículos todos os dias, Dona Lurdes. Mas está difícil…

Ela suspirou alto, como se eu fosse um fardo impossível de carregar.

— No tempo do teu pai, Rui, as mulheres não ficavam em casa à espera. Faziam-se à vida. — E voltou ao croché, como se tivesse encerrado o assunto.

O Rui levantou-se e foi para o quarto. Fiquei ali, sozinha com ela, a sentir o peso do fracasso.

Nessa noite, chorei baixinho na casa de banho. Não queria que o Rui ouvisse. Ele já tinha os próprios problemas: o trabalho no escritório estava cada vez mais instável, e a pressão da mãe não ajudava. Mas eu sentia-me a afundar. Cada dia era uma luta para não desaparecer.

Uma semana depois, aconteceu o inevitável. Cheguei a casa mais tarde do que o costume — tinha ido a uma entrevista de emprego em Oeiras e o comboio atrasou-se. Quando entrei, a Dona Lurdes estava à porta, braços cruzados.

— Onde é que andaste? — perguntou, sem sequer me dar tempo para pousar a mala.

— Fui a uma entrevista… — comecei, mas ela interrompeu-me.

— Entrevista? E não avisas ninguém? Sabes que o jantar não se faz sozinho!

O Rui apareceu no corredor, com ar cansado.

— Mãe, a Sofia está a tentar arranjar trabalho. Devias apoiar…

— Apoiar? Apoiar é ensinar responsabilidade! — gritou ela. — Nesta casa, cada um tem o seu papel. Se não queres cumprir, então talvez seja melhor pensarem noutra solução!

O silêncio caiu como uma bomba. O Rui olhou para mim, desesperado. Eu sentia-me a sufocar.

Nessa noite, discutimos no quarto.

— Não aguento mais, Rui. Sinto-me uma prisioneira nesta casa. Tudo o que faço está errado!

Ele abraçou-me, mas percebi que estava tão perdido quanto eu.

— Eu sei, Sofia. Mas não temos para onde ir…

— Preferia viver num quarto alugado do que continuar assim! — atirei, sem pensar.

Ele ficou calado. E eu percebi que estava sozinha naquela luta.

No dia seguinte, tomei uma decisão. Liguei à minha amiga Mariana e pedi-lhe para ficar uns dias em casa dela. Quando contei ao Rui, ele ficou em choque.

— Vais mesmo sair?

— Preciso de respirar, Rui. Preciso de me encontrar outra vez.

Arrumei uma mala pequena e saí sem olhar para trás. A Dona Lurdes nem apareceu para se despedir.

Na casa da Mariana, senti-me leve pela primeira vez em meses. Rimos, chorámos, falámos até tarde. Ela lembrou-me de quem eu era antes de tudo isto: uma mulher com sonhos, com força.

Dois dias depois, o Rui ligou-me.

— A mãe está furiosa. Diz que te pus fora de casa.

— Não quero saber, Rui. Preciso de tempo. Preciso que escolhas: ou continuamos juntos e tentamos construir algo nosso, ou fico por aqui.

Ele ficou em silêncio. E eu percebi que, pela primeira vez, estava a escolher-me a mim própria.

Passaram-se semanas. Arranjei um trabalho numa escola como assistente educativa. Aluguei um quarto pequeno, mas só meu. O Rui veio ter comigo algumas vezes, mas nunca conseguiu cortar o cordão com a mãe.

Hoje, olho para trás e vejo tudo com outros olhos. A Dona Lurdes continua a ser a general da sua casa. O Rui ficou com ela. Eu? Encontrei-me a mim própria. Aprendi que, às vezes, é preciso perder tudo para nos encontrarmos.

Pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas a expectativas que não são as suas? Quantas de nós têm coragem de dizer basta? E vocês, já sentiram que tinham de fugir para sobreviver?