Quando o Coração de uma Mãe Grita Mais Alto
— Dona Sofia, lamento muito, mas não há batimentos cardíacos. O seu bebé já não está connosco.
As palavras da Dra. Teresa ecoaram na sala fria do Hospital de Santa Maria. Senti o chão fugir-me dos pés. O Pedro, meu marido, apertou-me a mão, mas eu só conseguia olhar para o monitor vazio, como se a qualquer momento pudesse ouvir aquele som reconfortante: tum-tum, tum-tum. Mas não havia nada. Só silêncio.
— Tem a certeza? — perguntei, a voz trémula, quase inaudível.
A médica suspirou, desviando o olhar. — Infelizmente, sim. Vamos marcar uma curetagem para amanhã de manhã.
Saímos do hospital em silêncio. O Pedro tentou ser forte, mas vi-lhe as lágrimas nos olhos quando entrámos no carro. Em casa, a minha mãe esperava-nos com sopa quente e um abraço apertado. Mas eu não conseguia comer, nem chorar. Só sentia um vazio imenso, como se tivessem arrancado uma parte de mim.
Naquela noite, deitada na cama, ouvi o Pedro a chorar baixinho na sala. Oiço-o dizer ao telefone: — Não sei como ela vai aguentar isto, mãe…
Mas eu não dormi. Não consegui. Algo cá dentro gritava que aquilo estava errado. Não sei explicar — talvez seja loucura, talvez seja só desespero — mas eu sentia o meu bebé vivo. Senti-o mexer-se, mesmo que todos dissessem que era impossível.
No dia seguinte, recusei-me a ir ao hospital. O Pedro zangou-se comigo.
— Sofia, estás a ser irracional! Os médicos sabem o que dizem!
— Não vou! — gritei-lhe, com uma raiva que nunca tinha sentido antes. — O nosso filho está vivo! Eu sinto!
A minha mãe tentou acalmar-nos, mas também ela achava que eu estava a negar a realidade. — Filha, às vezes a vida é injusta…
Mas eu não cedi. Liguei para o hospital e exigi outra ecografia. A enfermeira do outro lado parecia impaciente.
— Dona Sofia, já temos o diagnóstico. Não vale a pena…
— Quero outra ecografia! — berrei, sem vergonha.
No hospital olhavam para mim como se fosse louca. A Dra. Teresa nem sequer apareceu; mandaram-me um médico novo, o Dr. Luís. Ele olhou para mim com pena.
— Vamos só confirmar para sua paz de espírito, está bem?
Deitei-me na marquesa, gelada de medo e esperança. O Pedro ficou à porta, braços cruzados, olhar perdido.
O Dr. Luís passou o gel na minha barriga e encostou o aparelho. Silêncio. Depois…
Tum-tum. Tum-tum.
O som mais bonito do mundo encheu a sala. O Dr. Luís arregalou os olhos.
— Está aqui! O coração está a bater! — disse ele, quase sem acreditar.
Comecei a chorar descontroladamente. O Pedro entrou a correr e abraçou-me como se nunca mais me quisesse largar.
O Dr. Luís pediu desculpa pelo erro e prometeu investigar o que tinha acontecido. Mas eu já não queria saber de desculpas — só queria proteger o meu filho daquele mundo frio e indiferente.
A notícia espalhou-se pela família como fogo em palha seca. A minha sogra ligou-me aos gritos:
— Como é possível? Então os médicos não sabem fazer o trabalho deles?
A minha mãe ficou dividida entre alívio e culpa por não ter acreditado em mim.
— Desculpa, filha… Eu só queria proteger-te da dor.
Mas a dor maior teria sido desistir dele.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções e consultas médicas. Fizeram-me exames atrás de exames; cada vez que entrava numa sala de espera sentia olhares de desconfiança dos profissionais de saúde.
— É aquela que fez escândalo no outro dia — ouvi uma enfermeira murmurar.
Mas eu já não tinha vergonha. Se fosse preciso berrar outra vez para salvar o meu filho, berrava sem hesitar.
O Pedro mudou depois daquele dia. Começou a ir às consultas comigo, segurava-me a mão com mais força e falava com a barriga todas as noites:
— Olá, campeão… O papá está aqui.
Mas nem tudo ficou bem em casa. A relação com a minha mãe ficou tensa; ela sentia-se culpada por não ter confiado em mim e eu não sabia como perdoá-la.
— Achas que sou má mãe por não ter acreditado? — perguntou-me uma noite, olhos vermelhos de tanto chorar.
— Não és má mãe… Só tiveste medo — respondi-lhe, mas por dentro ainda doía.
A gravidez avançou com sobressaltos: pressão alta, repouso absoluto durante semanas e um medo constante de que algo pudesse correr mal outra vez. Cada consulta era um teste à minha coragem; cada movimento do bebé era uma vitória silenciosa contra tudo e todos.
No oitavo mês, durante uma ecografia de rotina, descobriram que o bebé estava em sofrimento fetal e marcaram cesariana de urgência.
Lembro-me do cheiro a desinfetante no bloco operatório e das luzes brancas a ferirem-me os olhos enquanto esperava ouvir aquele choro tão desejado.
E então ouvi-o: um grito forte, cheio de vida e raiva pelo mundo que quase lhe roubou tudo antes mesmo de nascer.
Chorei como nunca chorei na vida quando mo puseram nos braços pela primeira vez. O Pedro beijou-me a testa e sussurrou:
— Conseguimos…
Hoje olho para o meu filho — o Miguel — e penso em tudo o que passámos juntos antes mesmo de ele respirar pela primeira vez.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mães terão desistido porque lhes disseram para desistir? Quantas vidas se perdem por falta de escuta ou respeito pelo instinto materno?
E vocês? Já sentiram esse grito cá dentro que ninguém mais ouve?