“Dividimos a conta, por favor” – A noite em que aprendi a respeitar-me
— Dividimos a conta, por favor. — A frase ecoou na minha cabeça como um trovão inesperado numa noite serena. O restaurante estava cheio, as luzes baixas criavam um ambiente acolhedor, mas naquele instante tudo pareceu gelar à minha volta. Olhei para o Miguel, sentado à minha frente, com aquele sorriso meio nervoso, e percebi que algo dentro de mim se partia.
Não era sobre o dinheiro. Nunca foi. Era sobre o gesto, sobre o que aquilo dizia de nós, ou melhor, do que nunca seríamos. Conhecemo-nos há duas semanas pelo aplicativo, trocámos mensagens engraçadas, confidências tímidas e até sonhos improváveis. Ele parecia diferente dos outros — ou talvez eu quisesse acreditar nisso. Quando sugeriu jantar num restaurante típico ali no Bairro Alto, senti aquele frio na barriga de quem ainda acredita em surpresas boas.
A noite começou bem. Falámos sobre tudo: infância, viagens, música. Ele contou-me como cresceu em Setúbal, filho único de pais divorciados, e como isso o tornou independente cedo demais. Eu partilhei histórias da minha família barulhenta em Almada, das discussões à mesa e dos domingos cheios de primos e risos. Rimo-nos das diferenças, encontrámos semelhanças. Por momentos, pensei que podia ser o início de algo bonito.
Mas então vieram os pequenos sinais. O telemóvel dele vibrava constantemente. Mensagens de trabalho, dizia ele, mas percebi olhares furtivos para o ecrã e sorrisos que não eram para mim. Quando lhe perguntei se estava tudo bem, respondeu seco:
— É só trabalho, sabes como é…
Fingi que sim, mas a dúvida ficou. Durante a sobremesa, tentei puxar conversa sobre o futuro, sobre o que procurávamos ali. Ele desviou o olhar, mexeu no copo de vinho e disse:
— Não gosto muito de pensar nessas coisas. Prefiro viver o momento.
Senti um aperto no peito. Eu queria mais do que momentos. Queria alguém que não tivesse medo de falar do amanhã, mesmo que fosse incerto.
Quando o empregado trouxe a conta, Miguel nem hesitou:
— Dividimos a conta, por favor.
O empregado assentiu, e eu fiquei ali, imóvel, a digerir não só o jantar mas também aquela frase. Não era o valor — era o simbolismo. Lembrei-me das conversas com a minha mãe:
— Filha, nunca aceites menos do que mereces. O respeito começa nos pequenos gestos.
Lembrei-me do meu pai, que mesmo nos piores dias fazia questão de pagar o café da minha mãe, só porque gostava de a ver sorrir. Não era machismo, era carinho. Era cuidado.
Miguel percebeu o meu silêncio e tentou remediar:
— Desculpa, não quero que penses mal… É só que gosto de ser justo.
Sorri, mas por dentro sentia-me pequena. Justo? Justo seria perguntar-me o que eu achava. Justo seria querer agradar-me, pelo menos neste início. Justo seria não me fazer sentir uma estranha ao seu lado.
Pagámos cada um a sua parte. Saímos para a rua, o frio cortava a pele e o silêncio entre nós era ensurdecedor. Caminhámos juntos até ao metro, mas já não havia magia. Ele tentou pegar-me na mão, mas eu recuei instintivamente.
— Está tudo bem? — perguntou, preocupado.
— Está… só estou cansada. — menti.
No metro, cada um seguiu para o seu lado. Sentei-me junto à janela e deixei as lágrimas caírem discretamente. Não era só sobre ele. Era sobre mim. Sobre todas as vezes que aceitei menos do que queria, com medo de parecer exigente ou ingrata. Sobre todas as vezes que me calei para não incomodar.
Cheguei a casa e a minha mãe estava na sala, a ver uma novela qualquer. Olhou para mim e percebeu logo:
— Correu mal?
Sentei-me ao lado dela e desabei:
— Mãe, porque é que é tão difícil encontrar alguém que nos respeite?
Ela abraçou-me e disse:
— Porque tu aprendes a respeitar-te primeiro. E quando isso acontece, já não aceitas migalhas.
Naquela noite não dormi. Revivi cada momento do jantar, cada palavra não dita. Pensei nas amigas que me contavam histórias parecidas, nos conselhos trocados em cafés e mensagens à pressa:
— Se ele não te valoriza agora, não vai valorizar depois.
No dia seguinte, Miguel mandou mensagem:
— Gostei muito de ontem. Repetimos?
Olhei para o telemóvel e hesitei. Podia fingir que nada se passou, podia dar-lhe outra oportunidade. Mas algo em mim mudou naquela noite. Respondi apenas:
— Acho que não estamos à procura do mesmo.
Ele não respondeu mais. Senti um misto de alívio e tristeza. Não era fácil dizer não, mas era necessário.
Os dias passaram e fui-me sentindo mais leve. Comecei a sair mais com as amigas, a rir-me das pequenas desilusões e a perceber que não estava sozinha. Cada uma de nós tinha uma história parecida — um jantar, um gesto, uma palavra que nos fez repensar tudo.
Um sábado à tarde, sentei-me com a minha avó na varanda. Ela olhou para mim com aqueles olhos sábios e perguntou:
— Ainda pensas naquele rapaz?
Sorri e respondi:
— Já não. Mas penso em mim. E acho que é isso que importa.
Ela apertou-me a mão e disse:
— O amor próprio é o primeiro amor que tens de cuidar.
Hoje olho para trás e percebo que aquela noite não foi um fracasso. Foi um começo. Aprendi a dizer não, a pôr limites, a exigir respeito — não só dos outros, mas de mim mesma.
E vocês? Já passaram por algo assim? Até onde estão dispostos a ir para não perderem a vossa dignidade? Será que ainda faz sentido esperar pequenos gestos num mundo cada vez mais apressado?