Entre Silêncios e Tempestades: A Minha Vida com Tomás

— Não percebo, mãe! Porque é que ninguém quer o Tomás? — gritei, com a voz embargada, enquanto olhava para o ecrã do telemóvel onde via, mais uma vez, a fotografia daquele menino de olhos grandes e tristes. A minha mãe, sentada à mesa da cozinha, suspirou fundo, mexendo o café com a colher, como se procurasse ali uma resposta que não existia.

— Ricardo, tu sabes como é… As pessoas têm medo do que não conhecem. E tu… já tens a tua vida feita. Para quê complicar?

As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. “Para quê complicar?”. Talvez porque sempre senti que a minha vida era demasiado simples, demasiado vazia. Os meus 39 anos pesavam-me nos ombros como um casaco molhado. Tinha um emprego estável numa editora em Lisboa, amigos que me aceitavam como era, mas faltava-me qualquer coisa. Ou alguém.

Conheci o Tomás através de uma amiga assistente social, a Marta, que me ligou numa noite de chuva torrencial.

— Ricardo, desculpa ligar-te tão tarde… Mas lembrei-me de ti. O Tomás tem 7 anos, está há meses na instituição. Já foi rejeitado por três famílias. Tem autismo, mas é um miúdo doce. Só precisa de alguém que não desista dele.

Aquela frase ficou-me cravada no peito: “alguém que não desista dele”. E eu sabia, naquele instante, que não ia desistir. Nem dele, nem de mim. No dia seguinte, marquei uma reunião com a Marta. O processo foi longo, cheio de burocracias, entrevistas, avaliações psicológicas. Senti-me examinado, julgado, como se cada detalhe da minha vida pudesse ser usado contra mim. O facto de ser solteiro, homossexual, sem família “tradicional”. Ouvi perguntas que me fizeram arder de raiva:

— Acha que consegue dar ao Tomás uma figura materna?
— Não tem receio de que ele sofra bullying por ter um pai gay?

Mas nunca hesitei. O Tomás era meu filho, mesmo antes de o ser oficialmente.

O primeiro encontro foi num parque, numa tarde fria de novembro. Ele não me olhou nos olhos. Ficou a empurrar um carrinho de brincar, em silêncio, enquanto eu tentava, desajeitado, puxar conversa.

— Gostas de carros, Tomás?

Ele não respondeu. Mas, quando me sentei ao lado dele, sem dizer nada, senti que era ali que devia estar. Aos poucos, fui aprendendo a linguagem dele: o silêncio, os gestos, os olhares fugidios. Aprendi que o amor não se diz, sente-se.

A adaptação foi dura. As primeiras noites em casa foram um inferno. Tomás chorava baixinho, encolhido na cama, e eu sentava-me ao lado dele, sem saber o que fazer. Liguei à Marta, desesperado.

— Ele não me quer, Marta. Acho que não sou capaz.

— Ele não está habituado a ser querido, Ricardo. Dá-lhe tempo. E não desistas.

Houve dias em que quis fugir. Dias em que o Tomás atirava os brinquedos contra a parede, gritava, batia-me. Dias em que a minha mãe me ligava só para perguntar:

— Ainda achas que fizeste bem?

Mas depois havia outros dias. Dias em que ele se sentava ao meu colo, sem dizer nada, e encostava a cabeça ao meu peito. Dias em que desenhava um sol amarelo e escrevia, com letras tortas: “Pai”.

A escola foi outro campo de batalha. Os outros pais olhavam-me de lado, cochichavam nos corredores.

— É aquele rapaz… O pai solteiro. E ainda por cima…

Uma vez, fui chamado à escola porque o Tomás tinha tido uma crise no recreio. A professora, dona Helena, olhou-me com pena.

— O Tomás precisa de apoio especializado. E talvez… de uma família mais estruturada.

Saí dali a tremer de raiva. Quem eram eles para julgar a nossa família? Estruturada? O que é isso, afinal?

Em casa, tentei explicar ao Tomás porque é que as pessoas podiam ser más. Ele olhou-me, finalmente, nos olhos e disse:

— Tu não vais embora, pois não?

Chorei. Chorei como nunca tinha chorado. Abracei-o com força e prometi:

— Nunca. Nunca te vou deixar, Tomás.

Aos poucos, fomos criando os nossos rituais. As manhãs de panquecas ao sábado, os passeios ao Jardim da Estrela, as noites de filmes antigos. Aprendi a celebrar cada pequena vitória: um sorriso, uma palavra nova, um abraço inesperado.

Mas a vida não é um conto de fadas. O meu pai, que nunca aceitou a minha orientação sexual, recusou-se a conhecer o Tomás. Disse-me, ao telefone:

— Isso não é família. Isso é uma aberração.

Desliguei sem responder. Doeu. Doeu mais do que queria admitir. Mas olhei para o Tomás, a brincar no tapete da sala, e soube que não precisava da aprovação de ninguém.

Houve uma noite em que o Tomás teve uma crise violenta. Atirou-se ao chão, gritou, bateu com a cabeça na parede. Liguei para o INEM, em pânico. No hospital, uma médica olhou-me com desconfiança.

— O senhor é mesmo o pai?

Mostrei os papéis da adoção, com as mãos a tremer. Senti-me pequeno, impotente, mas não desisti. Fiquei ao lado dele a noite toda, a segurar-lhe a mão.

Com o tempo, o Tomás começou a confiar em mim. Começou a falar mais, a rir mais. Um dia, no Natal, ofereceu-me um desenho: dois bonecos de mãos dadas, um grande e um pequeno. Escreveu: “Eu e tu”.

A minha mãe, que no início duvidava, acabou por se render ao neto. Hoje, é ela quem lhe faz os bolos preferidos e lhe conta histórias antes de dormir.

A nossa vida não é perfeita. Ainda há dias maus, ainda há olhares de lado, ainda há dúvidas. Mas há amor. Muito amor. E isso basta.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias como a nossa existem, escondidas atrás de portas fechadas, a lutar contra o preconceito e a solidão? Quantos Tomás esperam, em silêncio, por alguém que não desista deles?

E vocês, o que fariam se o amor vos batesse à porta de uma forma inesperada? Será que teriam coragem de abrir?