Quando o Amor se Mede em Faturas: A História de uma Mãe Entre o Dever e a Desilusão

— Maria, já viste quanto gastaste este mês? — A voz do Rui ecoou pela casa, carregada de uma frieza que me gelou o sangue. Eu estava sentada no chão da sala, com o pequeno Tomás ao colo, a tentar acalmá-lo depois de mais uma noite mal dormida. O cheiro a leite azedo misturava-se com o aroma do café que nunca chegava a beber quente.

Olhei para ele, com os olhos pesados de cansaço, e tentei encontrar palavras que não soassem a desculpa. — Rui, sabes que o Tomás está doente, tive de comprar o antibiótico, as fraldas… — Mas ele já não me ouvia. Estava de costas, a folhear os extratos bancários como quem procura provas de um crime.

— Não é possível, Maria! Isto não é sustentável. Eu trabalho o dia todo e tu só sabes gastar! — O tom dele era cortante, e cada palavra parecia uma facada. Senti o rosto arder, não só de vergonha, mas de raiva. Não era justo. Eu também trabalhava — vinte e quatro horas por dia, sem pausas, sem férias, sem ordenado.

A minha mãe sempre me disse que o casamento era uma parceria, mas ali, naquele momento, senti-me sozinha como nunca. O Tomás chorava mais alto, talvez a sentir a tensão no ar. Peguei nele e fui para o quarto, tentando abafar as lágrimas que me escorriam pelo rosto.

Naquela noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me na cama e olhei para o teto. O Rui estava na sala, a ver televisão, como se nada tivesse acontecido. Lembrei-me de quando nos conhecemos, na faculdade em Coimbra. Ele era divertido, atencioso, fazia-me rir. Onde estava esse homem agora? O que aconteceu ao nosso amor?

Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e olhares frios. O Rui saía cedo, chegava tarde, e eu ficava sozinha com o Tomás e as minhas dúvidas. Comecei a questionar tudo: será que sou mesmo um peso? Será que devia voltar a trabalhar, mesmo com o Tomás tão pequeno? Mas quem ficaria com ele? A minha mãe vivia em Viseu, já não tinha saúde para cuidar de um bebé. As creches estavam cheias, e as poucas vagas custavam mais do que eu poderia ganhar num part-time.

Uma tarde, enquanto dava banho ao Tomás, ouvi o telemóvel do Rui a vibrar no sofá. Não sou de mexer nas coisas dele, mas naquele dia, a curiosidade venceu-me. Vi uma mensagem de uma tal “Carla do escritório”:

— Precisas de boleia amanhã? —

O coração bateu mais forte. Não era a primeira vez que via o nome dela. Lembrei-me de um jantar de empresa em que ele chegou tarde, com o perfume diferente. Tentei afastar os pensamentos, mas eles voltavam sempre, como uma ferida que não cicatriza.

À noite, tentei falar com ele. — Rui, precisamos de conversar. Sinto que estamos a afastar-nos. — Ele nem tirou os olhos do telemóvel.

— Maria, estou cansado. Não compliques. —

Senti-me invisível. Era como se tivesse deixado de existir para ele, a não ser como uma despesa mensal. Comecei a guardar tudo para mim: as dores, os medos, até as pequenas alegrias de ver o Tomás dar os primeiros passos. Não queria partilhar nada com alguém que já não me ouvia.

Certa manhã, a campainha tocou. Era a minha mãe, com um saco de comida caseira e um sorriso cansado. — Vim ver como estás, filha. — Abracei-a com força, sentindo-me finalmente acolhida. No olhar dela, vi preocupação.

— O Rui não está? — perguntou, olhando em volta.

— Saiu cedo. — Não quis dizer mais nada. Sentei-me com ela à mesa, e desabafei tudo. As discussões, as contas, a solidão. Ela ouviu-me em silêncio, apertando-me a mão.

— Maria, tu não és um peso. És mãe, és mulher. Não deixes que te façam sentir menos do que isso. — As palavras dela foram um bálsamo, mas também um alerta. Até quando ia aguentar aquela vida?

Nessa noite, o Rui chegou mais tarde do que nunca. Trazia um cheiro a álcool e a perfume barato. Não disse nada. Fui para a cama, mas não consegui dormir. Ouvia-o a mexer nas gavetas, a resmungar sozinho. Senti medo. Medo do que podia acontecer se ficasse. Medo do que podia acontecer se saísse.

No dia seguinte, tomei uma decisão. Liguei à minha chefe antiga, a Dona Teresa, da pastelaria onde trabalhei antes de engravidar. — Dona Teresa, precisava de saber se tem algum trabalho para mim… —

Ela foi direta. — Maria, para ti há sempre lugar. Mas sabes que o ordenado é pouco. —

— Eu sei. Mas preciso de recomeçar. —

Quando contei ao Rui, ele riu-se. — Vais deixar o miúdo com quem? Achas que vais conseguir fazer tudo? —

— Vou tentar. — Respondi, com uma firmeza que nem sabia que tinha. — Não posso continuar assim. —

Ele saiu de casa nesse dia, sem dizer para onde ia. Fiquei sozinha com o Tomás, mas pela primeira vez em meses, senti-me livre. Liguei à minha mãe. — Mãe, preciso de ti. —

Ela veio logo. Ficou comigo durante semanas, ajudando-me com o Tomás, dando-me força para não desistir. Os dias eram duros: acordava de madrugada, deixava o Tomás com a minha mãe, apanhava o autocarro para a pastelaria. O dinheiro mal dava para as contas, mas sentia-me viva. Sentia que estava a reconstruir a minha dignidade, pedaço a pedaço.

O Rui ligava de vez em quando, sempre a perguntar pelo Tomás, nunca por mim. Descobri que estava a viver com a tal Carla. Doeu, mas já não tanto como antes. A dor foi dando lugar à aceitação. Eu não era responsável pela infelicidade dele. Só podia cuidar de mim e do meu filho.

Um dia, ao sair da pastelaria, encontrei a Dona Teresa à porta. — Maria, tenho visto como tens lutado. És uma mulher forte. — Sorri-lhe, com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez, senti orgulho em mim mesma.

Hoje, o Tomás já vai à escola. Continuo a trabalhar na pastelaria, agora com um contrato melhor. A minha mãe está mais frágil, mas ainda me apoia com tudo o que pode. O Rui vê o Tomás de vez em quando, mas a nossa relação resume-se a mensagens sobre horários e despesas.

Às vezes, à noite, olho para o meu filho a dormir e pergunto-me: será que fiz o suficiente? Será que algum dia vou conseguir confiar em alguém outra vez? Mas depois lembro-me de tudo o que superei. E penso: quantas mulheres vivem esta luta em silêncio? Quantas de nós aprendem a medir o amor em faturas e sacrifícios?

E vocês, já sentiram que o amor se perdeu entre contas e silêncios? O que fariam no meu lugar?