Silêncio de Inimigos: Quando o Vizinho se Torna uma Ameaça

— Não me olhes assim, mãe. Eu sei o que vi! — gritei, com a voz embargada, enquanto segurava Luna nos braços, o corpo dela ainda a tremer do susto. O cheiro a chouriço envenenado ainda pairava no ar do pequeno quintal. O papel amarrotado, com letras apressadas — “Isto é só o começo” — estava pousado na mesa da cozinha, como uma ameaça silenciosa que ninguém queria nomear.

A minha mãe, Maria do Carmo, olhava-me com olhos cansados, as mãos trémulas a mexerem no avental. — Inês, filha, não faças filmes. Isto deve ser coisa de miúdos… — Mas eu via no seu olhar a mesma dúvida que me consumia. Quem faria isto? Quem, entre os nossos vizinhos, seria capaz de tamanha crueldade?

O bairro de Santa Clara sempre fora um lugar tranquilo. Conhecíamos todos pelo nome: Dona Amélia, que vendia bolos à porta; o senhor António, reformado da CP, sempre com histórias de outros tempos; a família Silva, com os filhos barulhentos e o cão rafeiro que ladrava noite fora. E agora, alguém ali queria magoar-nos.

Naquela noite não dormi. Luna gemia baixinho ao meu lado, e eu revivia cada momento: o passeio pelo quintal, o súbito silêncio dos pássaros, o brilho estranho no olhar do senhor António quando passei por ele na rua. Estaria eu a enlouquecer?

No dia seguinte, fui à esquadra. O agente Costa ouviu-me com paciência, mas percebi logo que não esperava grande coisa. — Estas coisas acontecem mais do que pensa, menina Inês. Mas sem provas… — A sua voz sumiu-se quando lhe mostrei o papel. Ele leu-o duas vezes, depois olhou para mim com um misto de pena e cansaço.

Voltei para casa sentindo-me mais sozinha do que nunca. O silêncio dos vizinhos tornou-se pesado. Cumprimentavam-me com sorrisos forçados, mas sentia os olhares de soslaio, as conversas sussurradas quando eu passava.

Nessa tarde, decidi falar com a Dona Amélia. Ela era como uma avó para mim desde pequena. Encontrei-a a regar as flores na varanda.

— Dona Amélia, posso perguntar-lhe uma coisa? — A minha voz saiu mais fraca do que queria.

Ela pousou o regador e olhou-me nos olhos. — Já sei do que se trata, querida. O bairro fala… Dizem que foi alguém daqui?

— Não sei em quem confiar — confessei. — Sinto-me perdida.

Ela suspirou e fez-me sinal para entrar. Sentámo-nos à mesa da cozinha dela, rodeadas pelo cheiro doce do bolo acabado de fazer.

— Sabes, Inês… Nem sempre conhecemos quem vive ao nosso lado. O teu pai também confiava demais nas pessoas… — A sua voz embargou-se por um instante. — Mas não deixes o medo tomar conta de ti.

Saí dali com o coração apertado. O meu pai morrera há três anos; era ele quem mantinha a paz entre todos. Desde então, as pequenas rivalidades tinham crescido: discussões por causa do lixo, barulho à noite, lugares de estacionamento roubados.

Naquela noite, ouvi vozes no quintal dos Silva. Fui até à janela e vi o senhor Silva a discutir com a mulher dele.

— Já te disse para não te meteres! — gritava ela.

— Eles é que começaram! Sempre a meterem-se na nossa vida! — respondeu ele, furioso.

O medo transformou-se em raiva. No dia seguinte, fui confrontá-lo.

— Senhor Silva, posso falar consigo?

Ele olhou-me desconfiado. — O que foi agora?

— Sabe alguma coisa sobre o que aconteceu à minha Luna?

Ele bufou. — Não tenho nada a ver com isso! Mas se quer saber, talvez devesse olhar para o seu próprio quintal antes de acusar os outros!

A conversa terminou ali, mas as palavras dele ficaram-me na cabeça. Será que alguém da minha própria família poderia estar envolvido? O meu irmão Rui andava estranho ultimamente; passava as noites fora e evitava olhar-me nos olhos.

Nessa noite esperei-o acordada.

— Rui, preciso falar contigo.

Ele entrou no quarto sem me encarar.

— O que foi?

— Sabes alguma coisa sobre o que aconteceu à Luna?

Ele hesitou por um segundo demasiado longo.

— Não… Claro que não! Porque haveria de saber?

Mas eu conhecia-o bem demais. Havia algo ali que ele não queria dizer.

Os dias passaram e o ambiente em casa tornou-se insuportável. A minha mãe evitava falar sobre o assunto; Rui saía cada vez mais cedo e voltava cada vez mais tarde. Luna recuperava devagar, mas já não era a mesma: tinha medo de sair para o quintal.

Uma noite ouvi um barulho estranho junto ao portão. Espreitei pela janela e vi uma sombra a mover-se rapidamente. Corri para fora sem pensar e deparei-me com Rui, de telemóvel na mão e ar assustado.

— O que estás aqui a fazer? — perguntei, ofegante.

Ele hesitou antes de responder:

— Estava só a fumar… Não conseguia dormir.

Mas vi algo brilhar no chão: outro papel amarrotado. Peguei nele antes que ele pudesse impedir-me.

“Se não te calares, vais arrepender-te.” Desta vez não havia dúvidas: alguém queria assustar-nos — ou calar-nos.

Mostrei o papel à minha mãe na manhã seguinte. Ela chorou baixinho enquanto eu lhe segurava as mãos.

— Isto não pode continuar assim… Temos de fazer alguma coisa!

Decidimos instalar uma câmara discreta junto ao portão. Nas noites seguintes dormi mal, acordando ao mínimo ruído. Até que finalmente vimos algo nas imagens: uma figura encapuzada deixava papéis junto ao portão e desaparecia rapidamente pela rua escura.

Levei as imagens à polícia. O agente Costa prometeu investigar melhor desta vez.

Enquanto esperávamos respostas, tentei retomar a rotina: trabalho na biblioteca da universidade durante o dia; cuidar da Luna à noite; evitar cruzar-me com vizinhos desconfiados.

Certa tarde recebi um telefonema do agente Costa:

— Inês? Temos novidades. Preciso que venha à esquadra.

O coração batia-me descompassado quando lá cheguei. Ele mostrou-me uma fotografia tirada pelas câmaras da rua: era o senhor António.

— Reconhece esta pessoa?

Assenti em silêncio. Nunca teria imaginado… O senhor António sempre fora gentil comigo; contava histórias da juventude e oferecia rebuçados às crianças do bairro.

O agente explicou:

— Descobrimos que ele teve problemas recentes com outros vizinhos por causa dos cães fazerem barulho à noite… E há registo de outras ameaças semelhantes noutros bairros onde ele morou antes de vir para aqui.

Saí da esquadra em choque. Como é possível confiarmos tanto em alguém e afinal não conhecermos nada dele?

Naquela noite sentei-me no quintal com Luna ao colo e olhei para as luzes das casas em redor. Pensei em tudo o que perdera: a inocência de acreditar no melhor das pessoas; a paz de espírito; até parte da minha família parecia ter-se afastado irremediavelmente por causa deste medo instalado entre nós.

Dias depois soube que o senhor António tinha sido detido preventivamente enquanto decorriam as investigações. O bairro ficou dividido: uns diziam que era impossível; outros confessavam ter sempre desconfiado dele.

A minha relação com Rui nunca mais voltou ao normal; percebi que cada um carrega os seus próprios segredos e medos — e nem sempre conseguimos protegê-los ou compreendê-los.

Hoje olho para Luna e penso em tudo o que passámos juntas. Pergunto-me se alguma vez voltarei a confiar plenamente nos outros ou se este silêncio de ameaças ficará para sempre entre mim e quem me rodeia.

Será possível reconstruir a confiança depois de uma traição tão próxima? Ou será que vivemos todos rodeados de inimigos disfarçados de amigos?