Quando a Família se Cala: Um Retrato de Culpa, Perdão e Solidão
— Dona Teresa, a sua filha não vem mesmo buscá-la hoje? — perguntei baixinho, enquanto ajeitava a manta sobre as pernas frágeis dela. O relógio marcava quase sete da noite e o corredor do hospital já estava mergulhado num silêncio pesado, só interrompido pelo som distante de um monitor cardíaco.
Ela olhou para mim com olhos marejados, mas não respondeu. O silêncio dela era mais eloquente do que qualquer palavra. Eu sentia o peso daquela ausência como se fosse minha. No fundo, sabia que aquela história não era só dela — era também minha, era de todos nós que já sentimos o vazio de um telefonema que não chega, de uma visita prometida que nunca acontece.
Sou enfermeira há quase vinte anos no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Já vi muita coisa: famílias que se unem na dor, outras que se desfazem em silêncio. Mas aquela noite ficou gravada em mim como uma ferida aberta. Dona Teresa estava internada há três semanas na reabilitação neurológica depois de um AVC. Todos os dias perguntava pela filha, Ana, e todos os dias eu via a esperança dela murchar um pouco mais.
Naquela noite, depois do meu turno, sentei-me no balneário e chorei. Não só por Dona Teresa, mas por mim também. Porque eu sabia o que era esperar por alguém que não vem. O meu pai foi embora quando eu tinha dez anos. A minha mãe nunca falou sobre ele — só dizia que “há coisas que é melhor esquecer”. Cresci com esse silêncio a pairar sobre a casa, como uma nuvem que nunca se dissipa.
No dia seguinte, tentei ligar para Ana. O número estava na ficha da paciente. Atendeu ao terceiro toque:
— Sim?
— Boa tarde, fala a enfermeira Sofia do Hospital de Santa Maria. Estou a ligar por causa da sua mãe…
Do outro lado, silêncio. Depois uma voz fria:
— Não posso ir. Tenho a minha vida. Ela sabe porquê.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, desligou. Fiquei ali com o telefone na mão, sentindo uma raiva surda crescer dentro de mim. Quem era eu para julgar? Mas como podia alguém abandonar assim a própria mãe?
No refeitório, contei à colega Mariana o que tinha acontecido.
— Sabes lá tu o que se passou entre elas — disse ela, abanando a cabeça. — Às vezes as feridas são tão fundas que nem o tempo cura.
Mas eu não conseguia aceitar aquilo. Passei a visitar Dona Teresa nos meus intervalos, levando-lhe chá e bolachas Maria. Ela falava pouco, mas um dia, enquanto lhe penteava o cabelo branco, sussurrou:
— Fui má mãe…
Fiquei sem saber o que dizer. Senti uma vontade enorme de lhe pegar na mão e dizer que tudo ia ficar bem, mas as palavras ficaram presas na garganta.
Naquela noite sonhei com o meu pai. Ele estava sentado à mesa da cozinha, como nos poucos domingos felizes da minha infância. Olhou para mim e disse: “Perdoa-me”. Acordei a chorar.
Os dias passaram e Dona Teresa foi piorando. O médico disse que talvez não voltasse a andar. Eu via nela o espelho da minha própria mãe: uma mulher dura, orgulhosa, incapaz de pedir desculpa ou mostrar fraqueza.
Numa tarde chuvosa de novembro, Ana apareceu no hospital. Entrou no quarto sem olhar para mim e ficou parada à porta.
— Mãe…
Dona Teresa ergueu os olhos devagar.
— Vieste.
Ana não respondeu logo. Ficou ali, tensa, com as mãos crispadas na mala.
— Só vim porque me ligaram outra vez — disse por fim. — Não posso ficar muito tempo.
O silêncio entre elas era quase insuportável. Saí do quarto para lhes dar privacidade, mas fiquei à porta a ouvir sem querer.
— Porque é que nunca me disseste a verdade? — perguntou Ana, num tom quase infantil.
— Achei que te protegia… — respondeu Dona Teresa, com voz trémula.
— Protegias? Ou protegias-te a ti?
Ouvi um soluço abafado. Depois passos apressados: Ana saiu do quarto sem olhar para trás.
Encontrei-a no corredor, encostada à parede, a chorar baixinho.
— Às vezes é impossível perdoar — murmurou ela quando me viu.
Quis abraçá-la, mas limitei-me a pousar-lhe uma mão no ombro.
— Às vezes é impossível esquecer — respondi.
Naquela noite liguei à minha mãe. Não falávamos há meses por causa de uma discussão tola sobre dinheiro. Quando ouvi a voz dela do outro lado da linha, senti-me pequena outra vez.
— Mãe… desculpa — sussurrei.
Ela ficou em silêncio uns segundos antes de responder:
— Também tenho saudades tuas, Sofia.
No hospital, Dona Teresa foi piorando até partir numa madrugada fria de dezembro. No funeral estavam apenas duas pessoas: eu e Ana. Ficámos lado a lado em silêncio enquanto a terra caía sobre o caixão.
Depois do funeral, Ana virou-se para mim:
— Nunca saberei se fiz bem em não perdoar…
Olhei para ela e vi nos olhos dela o mesmo vazio que tantas vezes senti em mim própria.
Agora, sempre que passo pelo quarto onde Dona Teresa esteve internada, penso em todas as palavras não ditas, nos abraços adiados, nas culpas que carregamos sem saber se algum dia seremos capazes de largar.
Será que algum dia conseguimos mesmo perdoar quem nos magoou? Ou será que vivemos sempre à espera de um pedido de desculpa que nunca chega?