“Estás a envergonhar-nos, mãe” – O meu amor depois dos sessenta e o julgamento dos meus filhos
“Mãe, não podes estar a falar a sério. Estás a envergonhar-nos!” A voz da minha filha, Inês, ecoava pela sala, carregada de uma mistura de incredulidade e raiva. O meu filho mais velho, Rui, olhava para mim com os olhos semicerrados, como se me visse pela primeira vez. Eu sentia o coração a bater descompassado, as mãos trémulas sobre a mesa de madeira que tantas vezes nos uniu em jantares de domingo. Mas naquele momento, era como se um abismo se tivesse aberto entre nós.
Nunca pensei que o amor pudesse ser motivo de vergonha. Muito menos depois dos sessenta. Mas ali estava eu, com sessenta e três anos, apaixonada como uma adolescente pelo Manuel – um homem que conheci no grupo de caminhadas da Junta de Freguesia. Ele era viúvo há pouco mais de dois anos, e eu sentia-me viva ao seu lado como não me sentia desde que o António, o meu marido, partiu há quase uma década.
“Não percebo qual é o problema”, tentei argumentar, a voz embargada. “O pai morreu há tanto tempo… Eu também mereço ser feliz.”
O Rui levantou-se abruptamente. “Feliz? Com um homem que mal conheces? E se ele só quiser o teu dinheiro? Já viste a figura que andas a fazer no café? Toda a gente comenta!”
Senti uma onda de calor subir-me ao rosto. O Manuel era tudo menos interesseiro. Trabalhador, honesto, com um sorriso tímido e mãos calejadas de quem nunca teve medo do trabalho. Mas os meus filhos só viam escândalo e vergonha.
A Inês chorava baixinho. “Mãe… Não é normal. Não é suposto. Devias pensar nos netos.”
As palavras dela cortaram-me como uma faca. Sempre fui mãe dedicada, avó presente. Fui à escola buscar os netos quando era preciso, fiz bolos para as festas, dei colo nas noites de febre. E agora… agora era como se tudo isso não contasse porque me atrevi a amar outra vez.
Naquela noite, depois de eles saírem batendo portas e deixando um silêncio pesado atrás de si, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O Manuel mandou-me uma mensagem: “Correu bem?” Não tive coragem de lhe contar a verdade. Disse apenas: “Foi difícil.”
Os dias seguintes foram um tormento. A Inês deixou de me ligar. O Rui só me procurava para discutir contas ou assuntos práticos da casa. Os meus netos evitavam vir cá – ou talvez fossem os pais que não deixavam.
No grupo de caminhadas, as vizinhas cochichavam quando eu passava de braço dado com o Manuel. A dona Lurdes, sempre pronta para um comentário venenoso, disse alto para quem quisesse ouvir: “A Maria agora pensa que tem vinte anos.” Senti-me ridícula e humilhada, mas o Manuel apertou-me a mão com força.
“Não ligues”, disse ele baixinho. “As pessoas falam porque não têm coragem de viver.”
Mas era difícil não ligar. Cresci numa aldeia onde toda a gente conhece toda a gente e onde as mulheres viúvas deviam vestir preto para sempre e dedicar-se aos netos e à igreja. O Manuel era o meu raio de sol num quotidiano cinzento – mas também era o motivo do meu isolamento.
Uma tarde, a Inês apareceu sem avisar. Trazia os olhos inchados e um ar cansado.
“Mãe… Preciso de falar contigo.”
Sentei-me ao lado dela no sofá. Ela demorou a começar.
“Os miúdos perguntam porque é que já não vamos à tua casa. Dizem que têm saudades dos teus bolos… Eu não sei o que lhes dizer.”
“Diz-lhes a verdade”, respondi com um nó na garganta. “Que a avó está apaixonada.”
Ela olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
“Não percebo como consegues… Depois de tantos anos com o pai…”
“Amar outra vez não apaga o amor que tive pelo teu pai”, disse-lhe suavemente. “Mas eu ainda estou viva, Inês.”
Ela chorou no meu colo como quando era pequena e partiu um brinquedo favorito. Eu afaguei-lhe o cabelo e desejei poder protegê-la do mundo – mas desta vez era ela quem precisava de me aceitar.
Os meses passaram devagar. O Rui continuava distante; a Inês começou a vir mais vezes, mas nunca falava do Manuel. Os vizinhos continuavam a comentar – alguns com pena, outros com escárnio.
No Natal, decidi convidar todos para jantar cá em casa – incluindo o Manuel. Preparei tudo como antigamente: bacalhau com broa, rabanadas, arroz-doce com canela em forma de coração.
Quando o Manuel chegou, os meus netos correram para ele – tinham ouvido falar dele mas nunca o tinham visto. Ele trouxe-lhes rebuçados e contou histórias das suas caminhadas pela Serra da Estrela.
O Rui ficou tenso durante todo o jantar. Só relaxou quando viu os miúdos rir-se das piadas do Manuel.
Depois do jantar, enquanto arrumávamos a cozinha, o Rui aproximou-se.
“Mãe… Desculpa ter sido tão duro contigo.”
Olhei para ele com lágrimas nos olhos.
“Só quero que sejas feliz”, disse ele em voz baixa. “Mas custa-me ver-te mudar tanto…”
Abracei-o com força.
“Eu não mudei assim tanto, filho. Só deixei de ter medo.”
Naquela noite, depois de todos irem embora e a casa voltar ao silêncio habitual, sentei-me ao lado do Manuel na varanda.
“Valeu a pena?”, perguntou ele.
Sorri-lhe através das lágrimas.
“Vale sempre a pena lutar por quem nos faz sentir vivos.”
Hoje olho para trás e vejo quanto perdi – mas também quanto ganhei ao recusar viver segundo as expectativas dos outros. Ainda há quem fale nas minhas costas; ainda há dias em que me sinto sozinha ou insegura. Mas aprendi que nunca é tarde para amar nem para sermos fiéis a nós próprios.
Será que algum dia vamos conseguir libertar-nos do peso do julgamento alheio? Quantas vidas ficam por viver por medo do que os outros vão dizer?