No Limiar do Ano Novo: Entre o Silêncio e o Grito
— Não percebes mesmo, pois não? — atirei, com a voz trémula, enquanto segurava a chávena de chá tão forte que temi parti-la. O relógio da sala marcava 22h45 e, lá fora, o vento cortava as ruas de Braga como uma lâmina. Rui olhou-me como se eu fosse um enigma impossível de decifrar.
— O que é que não percebo agora, Marta? Só quero celebrar o ano novo, como toda a gente! — respondeu ele, já com aquele tom impaciente que me fazia sentir pequena.
A televisão zumbia baixinho com imagens de multidões em Lisboa, todos a sorrir, todos a brindar. Mas aqui em casa, o silêncio era pesado, interrompido apenas pelo som dos meus próprios pensamentos: “Será que sou eu que estou errada por não querer festa? Por querer apenas um pouco de paz?”
Desde que casámos, há oito anos, Rui sempre foi o centro das atenções. Era ele quem animava os jantares de família, quem fazia piadas nos almoços de domingo. Eu era a sombra discreta ao lado dele, aquela que sorria para não criar ondas. Mas hoje, na última noite do ano, sentia-me à beira de um precipício.
— Não quero convidados cá em casa este ano — disse, finalmente. — Preciso de silêncio. Preciso de mim.
Rui bufou e levantou-se do sofá. — Outra vez essa conversa? Marta, toda a gente faz festas! Até a minha mãe perguntou se íamos convidar os teus pais. Não podes continuar assim fechada no teu mundo!
O nome da minha mãe caiu como uma pedra no meio da sala. Desde a morte do meu pai, há dois anos, ela mal saía de casa. Eu sentia-me responsável por ela, mas também presa à sua tristeza. Rui nunca compreendeu isso.
— Não é só isso — tentei explicar. — Sinto-me cansada. Cansada de fingir que está tudo bem quando não está. Cansada de ser sempre eu a ceder.
Ele olhou-me com uma mistura de pena e irritação. — Achas que és a única cansada? Eu também trabalho! Também tenho problemas! Só queria uma noite divertida…
O telefone tocou. Era a minha irmã, Sofia. Hesitei antes de atender.
— Marta? Está tudo bem? A mãe ligou-me a chorar… Disse que não vai passar a meia-noite sozinha outra vez.
Fechei os olhos. O peso da culpa apertou-me o peito. — Sofia, eu não consigo estar em todo o lado ao mesmo tempo…
— Mas tu és sempre a forte, não és? — disse ela, num tom quase acusador. — És tu que aguentas tudo.
Desliguei sem responder. Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto antes sequer de perceber que estava a chorar.
Rui aproximou-se devagar. — Olha… Se quiseres, podemos ir só os dois jantar fora. Sem festas.
Mas já era tarde demais. O ressentimento tinha-se instalado entre nós como uma parede invisível.
— Não é sobre festas ou jantares, Rui! É sobre mim! Sobre o facto de eu já nem saber quem sou no meio disto tudo!
Ele ficou calado. Pela primeira vez em muito tempo, vi nos seus olhos um medo genuíno: medo de me perder.
Lembrei-me da Marta de há dez anos: cheia de sonhos, apaixonada pela escrita, capaz de passar horas a inventar histórias no café da esquina. Onde estava essa Marta agora? Enterrada sob camadas de compromissos familiares, obrigações conjugais e silêncios acumulados.
O relógio marcou 23h30. Lá fora, ouviam-se já os primeiros foguetes. Peguei no casaco e saí para a varanda. O frio cortou-me a pele mas senti-me viva pela primeira vez em meses.
— Vais ficar aí fora? — perguntou Rui da porta.
— Preciso de respirar — respondi.
Fiquei ali, sozinha com as luzes da cidade e o cheiro a pólvora no ar. Lembrei-me do meu pai e das passagens de ano em família: risos à volta da mesa, histórias contadas até tarde… Agora tudo parecia tão distante.
Senti o telemóvel vibrar outra vez: uma mensagem da minha mãe. “Desculpa por ser um peso.” Doeu ler aquilo. Doeu porque eu própria sentia ser um peso para todos à minha volta.
Rui apareceu ao meu lado com duas taças de espumante.
— Desculpa — disse ele baixinho. — Sei que tenho sido egoísta.
Olhei para ele e vi o homem por quem me tinha apaixonado: vulnerável, imperfeito, mas ainda ali.
— Eu também tenho culpa — admiti. — Fui deixando de lutar por mim.
Ele passou-me o braço pelos ombros e ficámos ali em silêncio até à meia-noite.
Quando os foguetes explodiram no céu e as pessoas gritavam “Feliz Ano Novo!”, senti uma mistura estranha de esperança e medo. Sabia que nada se resolvia numa noite só. Mas talvez fosse possível recomeçar.
No dia seguinte, acordei cedo e escrevi uma carta à minha mãe: “Não és um peso. És parte de mim.” Depois sentei-me à mesa da cozinha com Rui e falámos durante horas sobre tudo aquilo que nunca tínhamos tido coragem de dizer.
A vida não mudou num instante mágico. Mas naquele limiar entre o velho e o novo ano, aprendi que só posso encontrar paz se deixar de fugir de mim mesma.
E vocês? Quantas vezes já se sentiram perdidos dentro da própria casa? Será possível recomeçar mesmo quando tudo parece desmoronar?