O Meu Salário Não É Amor: Entre o Medo e a Liberdade
— Maria, já recebeste o ordenado? — perguntou o António, com aquela voz seca que me fazia estremecer por dentro. O relógio da cozinha marcava 20h17, e eu ainda sentia o cheiro do arroz queimado que tentara disfarçar com salsa fresca. Oiço a televisão na sala, onde o nosso filho, Tiago, fazia os trabalhos de casa com a avó. O António estava à minha frente, braços cruzados, olhar fixo no meu telemóvel pousado na mesa.
— Recebi, sim — respondi, tentando não tremer. — Vou já transferir para a tua conta.
Ele assentiu com a cabeça, satisfeito. Não era novidade. Há anos que o meu salário ia diretamente para ele. No início, achei que era normal. “É para as despesas da casa”, dizia ele. “Assim controlamos melhor o dinheiro.” E eu, ingénua, aceitei. Cresci numa aldeia perto de Viseu, onde as mulheres sempre foram ensinadas a confiar nos maridos, a não levantar ondas. A minha mãe dizia: “O homem é o chefe de família, filha. Não te metas em discussões desnecessárias.”
Mas agora, aos 38 anos, sentia-me sufocada. O meu ordenado de auxiliar administrativa era modesto, mas era meu. Ou devia ser. Só que não me lembrava da última vez que comprei um vestido sem pedir autorização ao António. Até para comprar um livro precisava de justificar.
Naquela noite, depois de transferir o dinheiro, fui arrumar a loiça à cozinha. As mãos tremiam-me tanto que deixei cair um copo. Partiu-se em mil pedaços no chão frio.
— Estás sempre distraída! — gritou o António da sala. — Não sabes fazer nada direito!
A vergonha queimou-me as faces. O Tiago apareceu à porta, olhos grandes e assustados.
— Mãe, estás bem?
Sorri-lhe como pude.
— Estou, filho. Vai acabar os trabalhos com a avó.
Quando finalmente fiquei sozinha, sentei-me à mesa e chorei baixinho. Não queria que ninguém me ouvisse. Senti-me pequena, insignificante. Perguntei-me: como é que cheguei aqui?
Lembrei-me do início do nosso namoro. O António era carinhoso, fazia-me rir. Prometeu-me uma vida melhor do que aquela que tive na aldeia. E eu quis acreditar nele. Casei cedo, aos 24 anos, e logo engravidei do Tiago. Deixei de trabalhar durante dois anos para cuidar dele. Quando voltei ao emprego, já tudo tinha mudado: o António controlava tudo — o dinheiro, as compras, até os meus amigos.
A minha mãe dizia que era normal. “O teu pai também era assim.” Mas eu sentia-me cada vez mais presa.
Uma tarde, no trabalho, a minha colega Ana reparou nas minhas olheiras.
— Maria, está tudo bem contigo? Pareces tão cansada…
Quis dizer-lhe tudo: que não tinha dinheiro para mim, que não podia sair com amigas sem pedir autorização, que sentia medo do meu próprio marido. Mas calei-me.
— É só cansaço — menti.
A Ana não desistiu.
— Olha, se precisares de falar… estou aqui.
Aquelas palavras ficaram comigo durante dias. Comecei a reparar nas pequenas coisas: como o António me ligava de hora a hora para saber onde estava; como criticava a minha roupa; como me fazia sentir culpada por tudo.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa das contas da casa — ele acusava-me de gastar demais no supermercado — perdi a cabeça.
— António, eu trabalho tanto quanto tu! Porque é que não posso gerir o meu próprio dinheiro?
Ele olhou para mim como se eu tivesse dito uma heresia.
— Porque és minha mulher! E porque eu sei o que é melhor para nós! Se não fosse eu, já estávamos na miséria!
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Não sou tua propriedade! — gritei-lhe pela primeira vez em anos.
O Tiago ouviu-nos e começou a chorar no quarto. Fui ter com ele e abracei-o forte.
Nessa noite dormi mal. No dia seguinte, fui trabalhar com os olhos inchados. A Ana percebeu logo.
— Maria… tens mesmo a certeza que está tudo bem?
Desta vez não consegui mentir.
— Não está — confessei num sussurro. — Sinto-me presa… nem sei quem sou já.
Ela apertou-me a mão.
— Já pensaste em pedir ajuda? Há associações que apoiam mulheres nesta situação…
Fiquei assustada só de pensar nisso. “Não é assim tão grave”, tentei convencer-me. Mas à noite, ao ver o António dormir tranquilo enquanto eu chorava em silêncio, percebi que estava a perder-me.
Comecei a guardar pequenas quantias do troco das compras. Dez euros aqui, cinco ali. Escondia-os num frasco de café vazio no fundo do armário da despensa. Era pouco, mas era um começo.
Certa tarde, quando fui buscar o Tiago à escola, encontrei a professora dele à porta.
— Dona Maria, posso falar consigo um minuto?
O coração disparou.
— Claro…
Ela olhou-me nos olhos com preocupação.
— O Tiago anda muito calado ultimamente… parece triste. Está tudo bem em casa?
Senti uma vergonha imensa. O meu filho estava a sofrer por minha causa? Prometi a mim mesma que tinha de mudar alguma coisa.
Nessa noite, quando o António me pediu novamente o salário do mês seguinte, hesitei.
— Preciso de algum dinheiro para mim — disse-lhe com voz firme. — Quero comprar umas roupas novas e pagar um curso online.
Ele riu-se na minha cara.
— Para quê? Vais gastar dinheiro à toa? Não precisas disso para nada!
Mas desta vez não cedi.
— Preciso sim! E vou ficar com parte do meu salário!
Ele ficou furioso e saiu de casa batendo com a porta. Fiquei sozinha na cozinha, mas senti uma estranha sensação de alívio misturada com medo.
No dia seguinte fui ao banco e abri uma conta só em meu nome. Senti-me culpada e ao mesmo tempo livre pela primeira vez em muitos anos.
Quando contei à Ana o que tinha feito, ela sorriu e abraçou-me.
— Estou tão orgulhosa de ti! Isto é só o começo…
O António demorou dois dias a voltar para casa. Quando entrou, ignorou-me completamente durante horas. Depois veio ter comigo à cozinha.
— Achas que és melhor do que eu agora? — perguntou com desprezo.
Olhei-o nos olhos e respondi:
— Não sou melhor nem pior. Só quero ser eu própria outra vez.
Ele bufou e saiu da cozinha sem dizer mais nada.
As semanas seguintes foram tensas. O António tornou-se mais frio e distante. Mas eu sentia-me cada vez mais forte. Inscrevi-me no curso online de contabilidade e comecei a sair mais com amigas depois do trabalho.
O Tiago parecia mais feliz também. Um dia disse-me:
— Gosto quando sorris assim, mãe…
Abracei-o com lágrimas nos olhos.
Hoje ainda vivo com o António — separar-me não é fácil quando se tem um filho pequeno e uma vida inteira construída juntos — mas já não sou aquela mulher submissa de antes. Tenho o meu dinheiro, os meus sonhos e estou a reconstruir quem sou.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas sem se darem conta? Quantas confundem controlo com amor? E vocês… já sentiram medo de serem vocês próprias?