Partida Sem Volta: Quando o Amor se Torna Prisão

— Vais mesmo sair assim, sem dizer nada? — ecoou a voz da minha consciência enquanto fechava a porta devagar, tentando não fazer barulho. O relógio da cozinha marcava 18h17. O silêncio da casa era pesado, quase sufocante, como se as paredes guardassem todos os gritos que nunca ousei soltar.

A mala estava pronta há dias, escondida no fundo do roupeiro, entre os lençóis de inverno e as recordações do nosso casamento. Nunca pensei que teria coragem. Mas hoje, com o António e a Dona Amélia fora — ele no café com os amigos, ela na missa das quartas —, o medo deu lugar ao desespero. Peguei nas chaves, no telemóvel e saí. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, misturado ao perfume adocicado da sogra. Fechei os olhos por um segundo, sentindo uma pontada de culpa.

Lembro-me do primeiro dia em que entrei nesta casa. Era tudo novo, promissor. António sorria-me com aquele jeito tímido e prometia mundos e fundos. Dona Amélia abraçou-me com força, mas logo percebi que o abraço era mais uma cerca do que um acolhimento. “Aqui em casa há regras”, disse ela logo na primeira semana. “E eu espero que as respeites.”

Os anos passaram e as regras multiplicaram-se: não se janta depois das oito, não se lava roupa à sexta-feira, não se fala alto na sala. António, sempre calado, deixava que a mãe ditasse tudo. Eu tentava agradar, mas cada gesto era criticado. “O arroz está empapado”, “Não sabes passar uma camisa?”, “O meu filho merece melhor”. Aos poucos fui perdendo a voz. Até o meu riso ficou mais baixo.

— Por que não te impões? — perguntava-me a minha irmã, Sofia, ao telefone. — Não podes viver assim para sempre.

Mas eu tinha medo. Medo de magoar António, medo de ficar sozinha, medo de admitir que o amor já não era suficiente para me manter ali. E agora cá estou eu, sentada numa cama estranha, num quarto alugado em Benfica, com as malas aos pés e o coração aos pulos.

O telemóvel vibra: 12 chamadas não atendidas do António, 4 mensagens da Dona Amélia. Não tenho coragem de ouvir nenhuma. Imagino-os a chegar a casa, a encontrar o bilhete apressado na mesa da cozinha: “Preciso de tempo para mim. Não me procurem.” Imagino o choro da sogra, os gritos do António — ou pior, o silêncio dele.

A vizinha do lado bate à porta:
— Está tudo bem? Ouvi barulho…
— Sim, obrigada — respondo, forçando um sorriso.

Mas não está tudo bem. Sinto-me perdida. Oiço vozes na minha cabeça: “E agora? Para onde vais? Como vais pagar as contas? E se ele nunca te perdoar?” Tento afastar esses pensamentos e concentro-me no presente: uma mala, um colchão duro e uma janela com vista para os telhados de Lisboa.

Na primeira noite não consigo dormir. Oiço os carros lá fora, as sirenes ao longe. Sinto falta do cheiro do café pela manhã, do barulho da televisão sempre alta na sala. Sinto falta até das críticas da Dona Amélia — porque pelo menos eram palavras dirigidas a mim.

No segundo dia, ligo à Sofia:
— Preciso de falar contigo.
Ela chega meia hora depois, com um saco de compras e um abraço apertado.
— Fizeste bem — diz ela, sem hesitar. — Já devias ter saído há muito tempo.
Mas eu não sei se fiz bem. Sinto-me egoísta. Penso no António sozinho em casa, na Dona Amélia a chorar pelos cantos.

— Ele nunca me defendeu — desabafo. — Sempre foi mais filho do que marido.
— E tu? Quando é que vais ser tua?

As palavras dela ficam a ecoar na minha cabeça durante dias. Tento arranjar trabalho — qualquer coisa serve: limpezas em escritórios, servir à mesa num café pequeno na Graça. O dinheiro é pouco mas suficiente para pagar o quarto e comprar comida.

Uma noite António liga insistentemente. Atendo finalmente:
— Porquê? — pergunta ele, a voz embargada.
— Porque já não aguentava mais — respondo baixinho.
— A minha mãe está destroçada… Eu… eu não percebo.
— Nunca percebeste — digo-lhe antes de desligar.

Choro até adormecer. No dia seguinte acordo com os olhos inchados mas com uma estranha sensação de leveza. Pela primeira vez em anos, ninguém me diz o que fazer ao pequeno-almoço.

Os dias passam devagar. A solidão pesa mas também liberta. Descubro que gosto de andar sozinha pelas ruas de Lisboa ao fim da tarde, de ouvir música alta sem medo de incomodar ninguém. Começo a escrever num caderno velho: listas de sonhos adiados, receitas que quero experimentar só para mim.

Uma tarde encontro Dona Amélia à porta do prédio onde trabalho:
— Podemos falar?
O coração dispara.
— Não tenho nada para lhe dizer.
Ela segura-me pelo braço:
— O António está mal… Não come, não dorme… Tu eras tudo para ele.
Sinto raiva e pena ao mesmo tempo.
— Eu era tudo para ele ou para si?
Ela baixa os olhos.
— Talvez para nós dois… Mas tu também tinhas culpa! Nunca foste como eu esperava…
— Pois não — respondo com firmeza inesperada. — E nunca vou ser.
Viro costas e entro no prédio sem olhar para trás.

Naquela noite escrevo no caderno: “Hoje fui finalmente eu.” Sinto medo do futuro mas também esperança. Sei que vai ser difícil recomeçar aos 37 anos, sem marido, sem casa própria, sem certezas. Mas pela primeira vez sinto que pertenço a mim mesma.

António envia uma mensagem semanas depois:
“Se quiseres conversar… estou aqui.” Apago sem responder. Ainda não estou pronta para voltar atrás ou sequer olhar para trás.

A vida segue devagarinho. Faço novas amigas no trabalho, descubro pequenos prazeres: um café quente na esplanada ao domingo de manhã, um livro lido até tarde sem ninguém a reclamar da luz acesa. A saudade dói mas já não sufoca.

Às vezes pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoar-me por ter fugido assim, sem aviso nem explicação suficiente. Mas talvez fugir tenha sido o meu primeiro ato de coragem em muitos anos.

E vocês? Já sentiram que precisavam fugir para sobreviver? Será egoísmo escolhermos a nossa paz em vez da paz dos outros?