Noite de Trovoada: O Desespero de um Pai Só

— Tiago, por favor, não deixes a Leonor acordada até tarde outra vez. Sabes que amanhã tem teste de Matemática! — A minha voz saiu mais dura do que queria, mas estava exausto. O relógio marcava 21h47 e eu ainda tinha de preparar a marmita para amanhã, separar a roupa dos miúdos e responder a um email do trabalho.

Tiago olhou para mim com aquele ar de adolescente magoado, os olhos castanhos semicerrados, a boca a tremer entre o desafio e a resignação. — Pai, eu sei cuidar deles. Não sou nenhum miúdo.

Suspirei. Tinha só 15 anos, mas desde que a mãe deles nos deixou — já lá vão quase três anos —, Tiago cresceu à força. Eu próprio não sei se cresci ou se apenas sobrevivi. — Confio em ti, filho. Só… faz o teu melhor, está bem? — Tentei sorrir, mas o cansaço pesava-me nos ossos.

Saí de casa para o turno da noite no hospital. Enfermeiro auxiliar, sempre a correr entre camas e alarmes, mas a cabeça ficou em casa. O medo de que algo corresse mal nunca me largava. Mas precisava daquele extra para pagar a renda.

A meio da noite, o telemóvel vibrou no bolso. Número desconhecido. O coração disparou.

— Senhor Rui Martins? Aqui é da PSP de Benfica. O seu filho Tiago está connosco na esquadra. Precisa de vir cá imediatamente.

O chão fugiu-me dos pés. — O que aconteceu? Os meus filhos estão bem?

— Venha cá, por favor. Explicamos tudo pessoalmente.

O resto da noite foi um borrão. Lembro-me de correr pelos corredores do hospital, pedir à colega para me cobrir, apanhar um táxi porque não tinha cabeça para conduzir. Cheguei à esquadra com as mãos a tremer.

Tiago estava sentado numa cadeira de plástico, olhos vermelhos, a morder o lábio. Ao lado dele, a Leonor (10 anos) e o Miguel (8) choravam baixinho. A pequena Matilde (5) dormia no colo de uma agente.

— Pai… desculpa — murmurou Tiago assim que me viu.

O agente explicou: tinham recebido uma chamada dos vizinhos por causa do barulho e de gritos vindos do nosso apartamento. Quando chegaram, encontraram a Leonor fechada na casa de banho a chorar, Miguel com um corte na testa e Tiago aos berros com eles.

— Foi um acidente! — Tiago defendia-se, olhos cheios de lágrimas. — O Miguel caiu quando tentava fugir da Leonor porque ela lhe atirou com um livro! Eu só tentei separar!

O agente olhou para mim com aquele ar de quem já viu tudo. — Senhor Rui, sabemos que é difícil. Mas não pode deixar um menor responsável por três crianças pequenas durante tantas horas.

A vergonha queimou-me por dentro. Senti-me o pior pai do mundo. Tinha falhado com eles. Tinha falhado comigo próprio.

A assistente social apareceu dois dias depois. Perguntas frias, olhar clínico. — O senhor trabalha à noite? Com quem ficam as crianças? Tem apoio familiar?

A minha mãe vive em Viseu, já não tem saúde para cuidar deles. Os irmãos da mãe das crianças cortaram relações quando ela saiu de casa. Amigos? Todos se afastaram quando perceberam que a minha vida era só trabalho e filhos.

— O senhor sabe que pode perder a guarda das crianças se não garantir condições mínimas de segurança — disse ela, sem rodeios.

Passei noites sem dormir. Tiago fechou-se no quarto, Leonor não me falava, Miguel tinha pesadelos e Matilde chorava por tudo e por nada. O silêncio à mesa era insuportável.

Uma tarde, Leonor explodiu:

— A culpa é tua! Se estivesses mais em casa nada disto acontecia! Eu odeio-te!

Senti o peito apertar-se. — Leonor, eu faço isto por vocês! Não vês que preciso trabalhar?

— Preferia que fosses pobre mas estivesses aqui! — gritou ela, atirando o prato ao chão.

Tiago saiu do quarto nesse momento, olhos vermelhos. — Pai, eu não quero mais tomar conta deles. Não sou mãe deles! Não sou adulto!

— Eu sei, filho… — tentei abraçá-lo, mas ele afastou-se.

Miguel começou a chorar baixinho. Matilde agarrou-se à minha perna.

Nessa noite sentei-me no sofá, sozinho, a olhar para as paredes nuas da sala. Senti-me esmagado pelo peso da responsabilidade. Lembrei-me da última vez que chorei: foi no funeral do meu pai, anos antes de tudo isto começar. Agora as lágrimas caíam sem controlo.

No dia seguinte, fui chamado ao tribunal de menores. A assistente social recomendou acompanhamento psicológico para todos e apoio domiciliário. O juiz olhou-me nos olhos:

— Senhor Rui, percebe que isto não é só uma questão de amor? As crianças precisam de estabilidade. Precisa de pedir ajuda.

Saí do tribunal com um papel na mão e um buraco no peito. Como é que se pede ajuda quando toda a gente já se foi embora?

Tentei ligar à minha mãe. — Mãe, preciso de ti…

Ela chorou do outro lado do telefone. — Filho, não posso ir para Lisboa, mas posso ouvir-te. Não desistas.

Procurei apoio na junta de freguesia. Uma vizinha, Dona Emília, começou a ajudar com as crianças depois da escola. O psicólogo do centro de saúde marcou sessões para todos.

As coisas melhoraram devagarinho. Tiago voltou a sorrir, Leonor começou a falar comigo outra vez, Miguel deixou de ter pesadelos e Matilde aprendeu a desenhar corações para mim.

Mas a culpa nunca desapareceu. Ainda hoje acordo a meio da noite a pensar: E se naquela noite tivesse ficado em casa? E se tivesse pedido ajuda mais cedo?

Ser pai sozinho é viver sempre no fio da navalha. Nunca sabemos se estamos a fazer o suficiente, ou se estamos apenas a sobreviver.

Às vezes pergunto-me: quantos pais como eu andam por aí, a lutar sozinhos, sem ninguém saber? Será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos pelas falhas inevitáveis? E vocês, já sentiram este peso?