Férias Quebradas: O Verão em Que a Minha Família se Desfez
— Não percebo, mãe. Como é que podes achar justo levar só o Tiago e deixar a Leonor para trás? — perguntei, com a voz já a tremer, sentada à mesa da cozinha, as mãos a apertar a chávena de café frio.
A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com aquele ar de quem já tomou uma decisão e não vai voltar atrás. — Marta, já te disse, a tua irmã está a passar por uma fase difícil. O Tiago precisa disto. A Leonor é mais crescida, já entende.
Senti o peito apertar. A Leonor tinha apenas dez anos, mas parece que para a minha mãe ela já era adulta. — Precisa? E a minha filha não precisa? Não sente? — A minha voz subiu, e percebi que estava a perder o controlo.
A minha mãe suspirou, levantou-se e começou a arrumar a loiça, como se o assunto estivesse encerrado. — Não vamos discutir mais isto, Marta. Se quiseres ajudar, podes contribuir para a viagem. A tua irmã não tem possibilidades agora.
Fiquei a olhar para ela, incrédula. — Mas a Leonor não vai! Porque é que eu havia de dar dinheiro para uma viagem em que a minha filha nem sequer é considerada?
O silêncio caiu entre nós como uma pedra. Oiço ainda hoje o som dos talheres a bater no lava-loiça, o cheiro do detergente misturado com a tensão no ar. Saí de casa da minha mãe com lágrimas nos olhos e um nó na garganta.
Quando contei ao meu marido, o Rui, ele encolheu os ombros. — A tua mãe sempre teve as suas preferências. Não vale a pena chateares-te.
Mas eu não conseguia aceitar. A Leonor passou dias a perguntar porque é que o primo ia ao Algarve com a avó e ela não. Inventei desculpas, disse que era por causa do trabalho, que talvez para o ano. Mas ela não é parva. Um dia, entrou no quarto, sentou-se na cama e perguntou:
— Mãe, a avó gosta mais do Tiago do que de mim?
O meu coração partiu-se. Abracei-a, mas não consegui responder. Como é que se explica a uma criança que o amor dos avós pode ser tão desigual?
A tensão foi crescendo. A minha irmã, a Ana, ligou-me dias depois:
— Ouvi dizer que não vais ajudar com a viagem. Achas justo? Sabes bem que estou desempregada. O Tiago não tem culpa.
— E a Leonor? — respondi, já exausta. — Ela também não tem culpa. Porque é que a mãe não leva as duas?
— Porque não pode pagar tudo! — gritou-me. — Se ajudasses, iam as duas!
— Mas eu não vou pagar para a minha filha ficar em casa!
A discussão terminou com o telefone a ser desligado na minha cara. Durante dias, não dormi. O Rui tentava acalmar-me, mas eu sentia-me sozinha, incompreendida. Comecei a evitar os jantares de família, as chamadas da minha mãe. A Leonor tornou-se mais calada, fechada no seu mundo de desenhos e livros.
O verão passou devagar. Vi as fotos do Tiago com a avó no Facebook: sorrisos na praia, gelados, castelos de areia. A Leonor olhava para o ecrã e depois para mim, sem dizer nada. Senti-me a pior mãe do mundo.
No final de agosto, a minha mãe convidou-nos para um almoço. O Rui insistiu para irmos, para tentar resolver as coisas. Chegámos e o ambiente estava pesado. A Ana não me olhava nos olhos. O Tiago falava animado das férias, sem perceber o clima.
Durante a sobremesa, a minha mãe tentou quebrar o gelo:
— Para o ano, talvez possamos ir todos juntos. Se cada um ajudar um bocadinho…
Não aguentei. — Para o ano? E este ano? O que é que digo à Leonor? Que a avó só se lembrou dela quando precisou de dinheiro?
A Ana levantou-se da mesa, furiosa. — Sempre foste egoísta, Marta! Só pensas em ti e na tua filha!
— Egoísta? Eu? — levantei-me também, sentindo as lágrimas a subir. — A mãe faz distinções desde sempre! Achas que não me lembro de quando éramos pequenas? Tu eras a preferida, eu era a que tinha de ser forte!
A minha mãe tentou intervir, mas já ninguém a ouvia. O Rui pegou na Leonor e saímos antes que as coisas piorassem. No carro, a Leonor chorava baixinho. O Rui apertou-me a mão, mas eu sentia-me vazia.
Os meses seguintes foram de silêncios e mensagens frias. O Natal aproximava-se e eu não sabia se devia ir a casa da minha mãe. A Leonor perguntava se a avó vinha vê-la, mas a resposta era sempre um encolher de ombros.
Um dia, recebi uma carta da minha mãe. Escreveu que sentia a minha falta, que não queria perder a família por causa de mal-entendidos. Mas nunca pediu desculpa. Nunca reconheceu que magoou a Leonor.
A Ana deixou de falar comigo. O Tiago, quando nos vê, fica envergonhado. A Leonor tornou-se mais desconfiada, menos aberta ao mundo. Eu tento compensá-la, mas sei que há feridas que não se curam com presentes ou passeios ao parque.
Às vezes pergunto-me se devia ter cedido, se devia ter dado o dinheiro só para evitar esta guerra. Mas depois olho para a minha filha e lembro-me do que é justo. O que é ser mãe? Proteger os nossos filhos ou manter a paz a qualquer custo?
Hoje, sentada no sofá, olho para as fotos antigas da família e sinto saudades do tempo em que acreditava que o amor dos avós era igual para todos. Será que alguma vez foi? Ou será que sempre fechámos os olhos às injustiças em nome da família?
E vocês, o que fariam no meu lugar? Vale a pena sacrificar a justiça pelo silêncio? Até onde devemos ir para proteger os nossos filhos das mágoas familiares?