O Peso do Silêncio: Entre a Fé e a Solidão
— Não percebes, mãe? Eu preciso de espaço! — gritou o João, batendo com a porta do quarto com uma força que fez tremer os quadros na parede. Fiquei ali, parada no corredor, com o coração apertado e as mãos a tremer. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Lembrei-me de quando ele era pequeno, de como corria para os meus braços depois de um pesadelo. Agora, parecia que eu era o próprio pesadelo dele.
A Ana, a minha filha mais velha, já tinha saído de casa há anos. Vive em Lisboa, trabalha tanto que só me liga ao domingo, e mesmo assim, às vezes, sinto que fala comigo por obrigação. O João, o meu mais novo, ainda vivia comigo, mas cada vez mais distante, fechado no seu mundo, nos seus fones de ouvido, nos seus silêncios. O meu marido, o António, partiu há cinco anos, levado por um cancro que nos roubou tudo: a alegria, a esperança, até a vontade de rir.
Naquela noite, sentei-me à mesa da cozinha, sozinha, com uma chávena de chá que arrefeceu sem que eu desse conta. O relógio fazia tic-tac, tic-tac, e cada segundo parecia um martelo a bater-me na cabeça. Senti uma vontade imensa de chorar, mas as lágrimas já não saíam. Era como se até isso me tivesse sido roubado.
No dia seguinte, tentei falar com o João. Fiz-lhe o pequeno-almoço, pus-lhe o pão torrado como ele gosta, mas ele saiu sem dizer uma palavra. O silêncio dele era uma parede. Liguei à Ana, mas ela não atendeu. Mandei-lhe uma mensagem: “Filha, está tudo bem?”. Só respondeu horas depois: “Desculpa, mãe, estou cheia de trabalho. Depois ligo.”
Comecei a sentir-me invisível. Ia ao supermercado e as pessoas pareciam não me ver. No café, os vizinhos falavam das suas vidas, dos netos, das férias, e eu sorria, fingindo que estava bem. Mas por dentro, sentia-me a desaparecer.
Uma tarde, sentei-me no banco do jardim em frente à igreja. Olhei para o céu, para as nuvens que passavam devagar, e perguntei-me: “O que fiz eu de errado? Porque é que os meus filhos se afastaram tanto?”. Senti uma raiva surda, uma tristeza funda. Lembrei-me das noites em claro, das febres, dos trabalhos para pagar as contas, dos sacrifícios todos. E agora, estava ali, sozinha, com o eco dos risos deles a atormentar-me.
Foi nesse banco que conheci a Dona Emília. Sentou-se ao meu lado, com o seu xaile de lã e um sorriso triste. — Também sente falta de alguém? — perguntou, como se lesse os meus pensamentos. Não consegui responder. Ela continuou: — O meu filho foi para França há vinte anos. Nunca mais voltou. No início, ligava todas as semanas. Agora, só manda postais no Natal.
Falámos durante horas. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me compreendida. Ela contou-me como a fé a ajudava a suportar a ausência, como rezava todos os dias para que o filho estivesse bem. — Deus nunca nos abandona, Maria. Mesmo quando tudo parece perdido, Ele está lá.
Nessa noite, procurei o terço que estava guardado numa gaveta desde o funeral do António. Sentei-me na cama e comecei a rezar. No início, as palavras saíam-me estranhas, como se fossem de outra pessoa. Mas, aos poucos, fui sentindo uma paz estranha, uma leveza. Chorei, finalmente. Chorei tudo o que tinha guardado durante anos.
Os dias passaram. Comecei a ir à missa ao domingo. A Dona Emília apresentava-me às outras senhoras, e aos poucos fui sentindo que fazia parte de alguma coisa. Havia sempre alguém que me perguntava como estava, que me oferecia um sorriso, um abraço. Pequenas coisas, mas que me davam força para continuar.
O João continuava distante. Uma noite, ouvi-o a falar ao telefone no corredor. — Não aguento mais esta casa. A minha mãe está sempre em cima de mim. Preciso de sair daqui. — Senti um aperto no peito, mas não disse nada. No dia seguinte, ele anunciou que ia viver com uns amigos para o Porto. — Não é por tua causa, mãe. Só preciso de crescer, de ser eu.
Ajudei-o a fazer as malas. Cada peça de roupa que dobrava era uma memória: o casaco que lhe comprei quando entrou para a faculdade, a camisola que a avó lhe tricotou. Quando saiu, abraçou-me rapidamente. — Cuida de ti, mãe. — E foi-se embora.
A casa ficou ainda mais silenciosa. Os dias eram todos iguais: acordar, tomar o pequeno-almoço sozinha, ver televisão, ir ao supermercado, voltar para casa. Às vezes, sentava-me na varanda e olhava para a rua, à espera de ver alguém conhecido. Mas quase ninguém passava.
A fé tornou-se o meu refúgio. Rezava todos os dias, pedia a Deus que me desse força para aguentar. Comecei a ajudar na paróquia: fazia bolos para as festas, ajudava a limpar a igreja. Sentia-me útil, sentia que ainda tinha valor.
Um dia, recebi uma chamada da Ana. — Mãe, preciso de falar contigo. — A voz dela tremia. — O Pedro deixou-me. Estou sozinha. — Fui ter com ela a Lisboa. Quando cheguei, encontrei-a sentada no chão da cozinha, a chorar. Abracei-a como quando era pequena. — Vai ficar tudo bem, filha. Estou aqui.
Passámos a noite a conversar. Ela contou-me como se sentia perdida, como tinha medo do futuro. Pela primeira vez em anos, senti que era necessária, que podia ajudar. Ficámos mais próximas. Ela começou a ligar-me todos os dias, a pedir conselhos, a partilhar as pequenas vitórias e derrotas do quotidiano.
O João demorou mais tempo a voltar a falar comigo. Mandava mensagens de vez em quando, quase sempre para pedir dinheiro ou para perguntar onde estava uma coisa que tinha deixado em casa. Mas um dia, apareceu de surpresa. — Mãe, posso ficar aqui uns dias? — Estava magro, com olheiras fundas. — As coisas não correram bem no Porto.
Recebi-o de braços abertos. Não lhe fiz perguntas. Preparei-lhe o prato favorito, sentei-me ao lado dele no sofá. Ficámos em silêncio, mas era um silêncio diferente, menos pesado. Aos poucos, foi-me contando o que tinha acontecido: perdeu o emprego, discutiu com os amigos, sentiu-se sozinho.
— Agora percebo o que sentiste quando o pai morreu — disse-me uma noite. — A solidão dói mesmo.
Abracei-o. — Dói, filho. Mas passa. Com o tempo, passa.
A casa voltou a encher-se de vozes, de risos, de discussões. Não era perfeita, mas era vida. A Ana vinha passar fins de semana connosco, ajudava-me na cozinha, contava histórias do trabalho. O João arranjou um emprego novo na vila, começou a sair com amigos de infância.
A fé não me devolveu o que perdi, mas deu-me força para aceitar o que tenho. Aprendi a perdoar os meus filhos, a perdoar-me a mim própria pelos erros que cometi. Aprendi que a solidão faz parte da vida, mas não precisa de ser uma prisão.
Agora, quando me sento na varanda ao fim da tarde, olho para o céu e agradeço. Agradeço pelo que tive, pelo que perdi e pelo que ainda posso viver.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mães vivem este silêncio sem nunca terem coragem de pedir ajuda? Quantas de nós aprendemos a sobreviver quando tudo parece desabar? Talvez partilhar a minha história ajude alguém a encontrar o seu próprio caminho para fora da solidão.