Sem Berço, Sem Esperança: O Meu Regresso ao Caos

— Não há berço, não há fraldas, nem sequer um biberão? — O grito saiu-me da garganta antes que pudesse controlar. O eco da minha voz ressoou pelas paredes frias do nosso pequeno apartamento em Benfica, e o silêncio que se seguiu foi ainda mais ensurdecedor.

O João apareceu à porta da sala, com o telemóvel ainda colado ao ouvido, a camisa amarrotada e as olheiras fundas de quem não dorme há dias. — Desculpa, amor, o trabalho tem sido um inferno… — murmurou, desviando o olhar, como se a culpa pudesse evaporar-se assim.

Olhei para o meu filho, o Miguel, enrolado numa manta improvisada sobre o sofá. Tinha acabado de sair do hospital, ainda sentia o corpo dorido do parto, e a cabeça latejava com a falta de sono. O cheiro a leite azedo misturava-se com o aroma de café velho que pairava no ar. Senti-me esmagada por uma onda de desespero.

— João, eu avisei-te. Pedi-te tantas vezes para preparares as coisas. Não posso fazer tudo sozinha! — A minha voz tremeu, e as lágrimas ameaçaram cair.

Ele suspirou, largou finalmente o telemóvel e sentou-se ao meu lado. — Eu sei, eu sei… Mas o chefe pediu-me para ficar até tarde, e depois… — A frase ficou no ar, inacabada, como tantas outras promessas.

A verdade é que o João sempre foi assim: dedicado ao trabalho, ambicioso, mas distraído com tudo o resto. Quando engravidei, prometeu que ia mudar, que ia ser diferente. Mas agora, com o Miguel nos braços, percebia que as palavras dele eram só isso — palavras.

Naquela noite, tentei adormecer o Miguel no meu colo, enquanto o João ressonava no quarto ao lado. Ouvia o barulho dos carros na rua, o som distante de uma televisão qualquer, e sentia-me mais sozinha do que nunca. Lembrei-me da minha mãe, que morreu quando eu tinha dez anos. Ela teria sabido o que fazer. Ela teria preparado tudo.

No dia seguinte, acordei com o choro do Miguel e uma sensação de vazio. Fui à cozinha procurar leite em pó, mas só encontrei uma lata vazia e um pacote de bolachas partidas. O João já tinha saído para o trabalho, deixando um bilhete apressado: “Volto cedo. Amo-te.”

Amo-te. Palavras bonitas, mas vazias quando não há gestos a acompanhá-las.

Peguei no telemóvel e liguei à minha sogra, a Dona Amélia. Ela atendeu ao terceiro toque, com a voz rouca de quem acabou de acordar.

— Olá, querida. Está tudo bem?

— Não, Dona Amélia. Não está. Preciso de ajuda. Não tenho nada para o Miguel. O João não preparou nada… — A minha voz falhou, e ela percebeu logo.

— Vou já aí. Não te preocupes, filha.

Meia hora depois, ela chegou com sacos cheios de fraldas, biberões e até um pequeno berço desmontável. Abraçou-me com força, e eu desatei a chorar. Pela primeira vez desde que saí do hospital, senti-me amparada.

— Os homens às vezes não percebem… — disse ela, enquanto montava o berço no quarto. — O João é bom rapaz, mas precisa de um abanão. Tens de lhe dizer o que sentes.

Assenti, mas no fundo sentia-me cansada de falar, de pedir, de esperar que ele mudasse.

Os dias seguintes foram uma sucessão de rotinas exaustivas: dar de mamar, mudar fraldas, adormecer o Miguel, tentar comer qualquer coisa entre choros e cólicas. O João chegava sempre tarde, com desculpas novas: reuniões, trânsito, cansaço. Às vezes nem olhava para o filho.

Uma noite, já não aguentei mais. Esperei que ele chegasse e sentei-me à mesa da cozinha, com o Miguel ao colo.

— João, precisamos de falar.

Ele largou a pasta no chão e olhou-me com ar cansado. — Agora? Não pode ser amanhã?

— Não. Tem de ser agora. Sinto-me sozinha. Sinto que estou a criar o nosso filho sozinha. Preciso de ti aqui, não só em palavras, mas em gestos. Preciso que sejas pai, não só marido.

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que ia sair porta fora. Mas em vez disso, sentou-se à minha frente e passou as mãos pelo rosto.

— Eu não sei como fazer isto, Sofia. O meu pai nunca esteve presente. Sempre achei que bastava trabalhar muito para dar tudo ao meu filho. Mas vejo que não chega…

— Não chega mesmo, João. O Miguel precisa de ti. Eu preciso de ti. Não quero ser mais uma mulher invisível nesta casa.

As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Pela primeira vez, vi o João vulnerável, despido das armaduras do dia-a-dia.

— Desculpa, Sofia. Eu vou tentar mudar. Prometo.

Desta vez, não respondi. Já ouvira promessas demais. Mas no fundo, queria acreditar nele.

As semanas passaram, e aos poucos o João começou a aparecer mais. Levava o Miguel ao colo, mudava-lhe a fralda, tentava adormecê-lo. Às vezes fazia tudo mal, mas tentava. E isso já era alguma coisa.

A relação entre nós continuava tensa. Havia silêncios pesados à mesa, discussões por pequenas coisas: o lixo por tirar, a loiça por lavar, o dinheiro que nunca chegava para tudo. A maternidade não era como nos filmes — era dura, solitária, cheia de dúvidas e culpas.

Um dia, a Dona Amélia ligou-me a chorar. O meu sogro tinha tido um AVC. O João correu para o hospital, e eu fiquei sozinha com o Miguel durante dias. Senti-me abandonada outra vez, mas desta vez compreendi que ele também precisava de mim.

Quando o sogro voltou para casa, debilitado, a família uniu-se. Os jantares passaram a ser em casa da Dona Amélia, todos à volta da mesa, entre risos e lágrimas. O João começou a falar mais comigo, a perguntar como me sentia. Pela primeira vez em meses, senti que éramos uma família.

Mas a vida não é feita só de finais felizes. O Miguel ficou doente com bronquiolite. Passei noites em claro no hospital, com medo de o perder. O João esteve sempre lá, segurando-me a mão, chorando comigo. Foi nesse sofrimento partilhado que nos reencontrámos.

Hoje, olho para trás e vejo o quanto mudámos. O João ainda trabalha demais, eu ainda me sinto sozinha às vezes. Mas aprendemos a falar, a pedir ajuda, a não guardar tudo cá dentro.

A maternidade ensinou-me que não há famílias perfeitas, só famílias que lutam para não se perderem umas das outras. E vocês? Já sentiram que tudo estava perdido? Como conseguiram reconstruir a confiança quando tudo parecia desmoronar?