O Peso do Ouro: A Vida de Uma Filha Que Nunca Foi Suficientemente Boa

— Não percebes mesmo nada, Mariana! — gritou o meu pai, batendo com a mão na mesa de jantar, fazendo tilintar os talheres de prata. O silêncio que se seguiu foi tão pesado quanto o lustre de cristal que pairava sobre nós. A minha mãe, sempre impecável, olhou-me de lado, os lábios finos apertados, como se a minha existência fosse uma nódoa no linho branco da toalha.

Eu tinha acabado de dizer que queria estudar Belas-Artes em Lisboa. O meu pai, António, empresário de sucesso em Cascais, não conseguia aceitar que a filha única não seguisse Direito ou Gestão. “O que é que vais fazer com isso? Pintar quadros para vender na feira?”, atirou ele, com desdém. A minha mãe, Leonor, limitou-se a suspirar, como se o meu sonho fosse um capricho de criança mimada.

Mas eu não era mimada. Cresci rodeada de tudo o que o dinheiro podia comprar, menos aquilo que mais queria: aprovação. Lembro-me de ser pequena e ouvir a minha mãe dizer à vizinha: “A Mariana é inteligente, mas podia esforçar-se mais.” Nunca era suficiente. As notas altas eram esperadas, os prémios eram obrigação. O orgulho deles era sempre condicional, como se eu tivesse de pagar uma dívida invisível.

Naquela noite, depois do jantar, fechei-me no quarto. Oiço ainda hoje o som abafado das vozes deles na sala, a discutir o meu futuro como se eu fosse um investimento mal calculado. Senti-me sozinha, mesmo rodeada de luxo. O meu quarto era enorme, com vista para o mar, mas as paredes pareciam apertar-se à minha volta.

No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe, mas ela estava ocupada a organizar um jantar de beneficência. “Mariana, agora não. Tens de perceber que a vida não é só fazer o que se quer.” O meu pai saiu cedo, nem me olhou nos olhos. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Porque é que nunca me ouviam? Porque é que nunca era suficiente?

Os meses passaram e a tensão aumentou. Fui aceite na Faculdade de Belas-Artes, mas o meu pai recusou-se a pagar. “Se queres ir, arranja um trabalho. Aqui em casa não se financiam devaneios.” A minha mãe chorou, mas não me defendeu. Senti-me traída. Era como se o amor deles tivesse um preço e eu nunca tivesse saldo suficiente.

Arranjei trabalho num café em Lisboa. Os primeiros dias foram duros. Nunca tinha lavado chávenas, nunca tinha servido mesas. Os clientes olhavam para mim com desconfiança — a menina rica a tentar ser gente. Mas ali, entre o cheiro a café e o barulho dos pratos, comecei a sentir-me livre. Pela primeira vez, as minhas escolhas eram minhas.

Os meus pais deixaram de me ligar. O Natal passou-se sem convite. Vi as fotos da família perfeita nas redes sociais, todos sorridentes à mesa, e chorei sozinha no meu quarto minúsculo. O meu salário mal dava para a renda, mas recusei pedir ajuda. O orgulho era tudo o que me restava.

Um dia, a minha mãe apareceu no café. Estava pálida, os olhos vermelhos. “O teu pai está doente, Mariana. Cancro.” O chão fugiu-me dos pés. Fui vê-lo ao hospital. Estava magro, irreconhecível. Olhou para mim com uma tristeza que nunca lhe tinha visto. “Desculpa, filha. Fui duro demais contigo.”

Chorei como nunca tinha chorado. O meu pai morreu dois meses depois. No funeral, a família reuniu-se, mas o vazio era maior do que nunca. A minha mãe abraçou-me, mas senti que era tarde demais para recuperar o tempo perdido.

Voltei para Lisboa, para o meu café, para as minhas tintas. Continuei a pintar, a trabalhar, a tentar encontrar o meu lugar. A herança ficou quase toda para a minha mãe. A mim coube-me uma pequena quantia e um quadro antigo, pintado pelo meu avô. Sorri ao ver a assinatura: “Para a Mariana, que nunca deve deixar de sonhar.”

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivesse cedido? Se tivesse seguido o caminho que eles queriam? Ou será que, no fundo, todos procuramos apenas ser vistos e amados por quem mais importa?

E vocês, alguma vez sentiram que o amor da vossa família tinha um preço? Até onde iriam para serem aceites?