Quando a Porta ao Lado se Torna um Abismo: A Minha História de Limites, Família e Confiança Quebrada
— Inês, desculpa lá, mas podes ficar com o Tomás outra vez hoje? — A voz da Leonor atravessou a porta do meu apartamento antes sequer de eu conseguir pousar as compras. O Tomás, o filho dela, já estava ao meu lado, mochila às costas e olhos cansados. — É só por uma horinha, prometo.
Senti o peso do pedido, igual a tantos outros. O meu coração apertou-se. O Miguel, o meu filho, olhou para mim, à espera da resposta. O jantar ainda por fazer, o trabalho por acabar, e mais uma vez, a minha vontade de dizer não engolida pelo medo de parecer egoísta.
— Claro, Leonor. Entra, Tomás — respondi, forçando um sorriso. Por dentro, gritava.
Nunca pensei que a amizade com a Leonor fosse chegar a este ponto. Quando ela se mudou para o prédio, há três anos, éramos duas mães exaustas, recém-divorciadas, a tentar equilibrar trabalho e filhos pequenos. Lembro-me da primeira vez que nos sentámos no parque, os miúdos a brincar na areia, nós a partilhar histórias de noites mal dormidas e ex-maridos ausentes.
— Sabes, Inês, às vezes sinto que estou a afogar-me — confessou ela nesse dia. — Não sei como vou dar conta de tudo.
— Eu também — admiti, sentindo um alívio estranho por não estar sozinha.
A partir daí, tornámo-nos inseparáveis. Partilhávamos refeições, trocávamos favores, dávamos colo uma à outra. Mas aos poucos, os pedidos da Leonor começaram a pesar. Primeiro eram pequenas coisas: buscar o Tomás à escola, ficar com ele uma horinha. Depois vieram os fins de semana, as noites em que ela “precisava mesmo de sair”. O meu apartamento tornou-se extensão do dela. O Miguel começou a perguntar porque é que o Tomás estava sempre connosco.
— Mãe, ele não tem casa? — perguntou-me um dia, com aquela inocência cruel das crianças.
— Tem, filho. Só que às vezes a mãe dele precisa de ajuda — tentei explicar.
Mas não era só isso. O Tomás começou a trazer problemas. Birras, discussões com o Miguel, brinquedos partidos. Uma vez, encontrei-o a vasculhar as minhas gavetas. Quando lhe perguntei o que fazia, respondeu-me com um encolher de ombros: — A minha mãe disse que aqui posso fazer como em casa.
Fiquei gelada. Falei com a Leonor, mas ela riu-se:
— Oh, Inês, são crianças! Não leves tudo tão a sério.
O que ela não via era o cansaço a acumular-se em mim. O meu trabalho começou a sofrer. O chefe chamou-me ao gabinete:
— Inês, tens estado distraída. Precisas de descansar?
Como explicar que o meu descanso era constantemente invadido? Em casa, o meu irmão Rui começou a notar a diferença.
— Tu não eras assim. Sempre pronta para todos, mas agora pareces um fantasma — disse-me num jantar de família.
A minha mãe, sempre pragmática, atirou:
— Tens de aprender a dizer não, filha. Senão, ninguém te respeita.
Mas como dizer não à Leonor? Ela não tinha família por perto. O ex-marido desaparecera. E eu sabia o que era sentir-me sozinha. Mas cada vez mais sentia que estava a ser usada.
O ponto de rutura chegou numa sexta-feira. Tinha planeado um jantar especial com o Miguel. Pizza caseira, filme, só nós os dois. Estava a cortar os ingredientes quando ouvi a campainha. Era o Tomás, sozinho.
— A minha mãe disse para ficar aqui até ela chegar — disse, já a tirar os sapatos.
— Mas Tomás, eu não sabia de nada… — comecei, mas ele já estava na sala.
Tentei ligar à Leonor. Nada. Mensagens não lidas. O Miguel fechou-se no quarto, zangado. O jantar ficou frio. Quando finalmente a Leonor apareceu, já passava das dez.
— Desculpa, perdi a noção das horas. Precisei mesmo de espairecer — disse, sem olhar para mim.
— Leonor, isto não pode continuar assim. Eu também tenho vida. O Miguel ficou triste, tínhamos planos… — tentei explicar, mas ela interrompeu-me.
— Achava que eras minha amiga. Não posso contar contigo?
Aquelas palavras doeram mais do que eu esperava. Senti-me culpada, egoísta. Mas também furiosa. Passei a noite em claro, a pensar em tudo o que tinha dado, em tudo o que tinha perdido: tempo com o meu filho, paz em casa, até a minha autoestima.
No dia seguinte, decidi falar com o Miguel.
— Filho, desculpa pelo que aconteceu ontem. Às vezes, ajudar os outros faz-nos esquecer de nós próprios. Mas prometo que vou mudar.
Ele abraçou-me. — Só quero ter-te para mim às vezes, mãe.
A partir daí, comecei a pôr limites. Disse à Leonor que só podia ficar com o Tomás em situações urgentes. Ela afastou-se. No prédio, os vizinhos começaram a cochichar. Uma vez ouvi-a dizer à dona Rosa:
— A Inês virou-me as costas. As pessoas só pensam nelas.
Doeu. Mas pela primeira vez em muito tempo, senti-me livre. O Miguel voltou a sorrir mais. O meu trabalho melhorou. Mas a solidão também voltou. Às vezes, dou por mim a olhar para a porta da Leonor, a perguntar-me se fiz o certo.
Numa tarde de domingo, cruzei-me com ela no elevador. Olhou-me de lado, o Tomás escondido atrás das pernas.
— Espero que estejas feliz — disse, fria.
— Só quero paz para mim e para o meu filho — respondi, com voz trémula.
O silêncio entre nós tornou-se um muro. Sinto falta da amiga que tive. Mas não da pessoa em quem ela se tornou.
Agora, sento-me muitas vezes à janela, a ver o Miguel brincar sozinho no pátio. Pergunto-me: será que fui egoísta? Ou finalmente aprendi a proteger-me? Até onde devemos ir por amizade antes de perdermos quem somos?
E vocês? Já sentiram que ajudar alguém vos fez perder o vosso próprio espaço? Onde traçam a linha entre generosidade e abuso?