Quando o telefone toca e dói: A história de uma mãe portuguesa e a filha distante

— Vais atender? — perguntou o António, com a voz rouca, enquanto o telefone vibrava pela terceira vez naquela manhã.

Fiquei a olhar para o visor, o nome da Ana a piscar como um farol numa noite de tempestade. O coração apertou-se-me no peito. Atender ou não atender? Cada chamada dela era uma moeda ao ar: ou vinha carregada de saudade ou de cobranças veladas. Respirei fundo e deslizei o dedo no ecrã.

— Olá, filha…

Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro.

— Mãe, preciso de falar contigo — disse ela, a voz tensa, quase fria.

Fechei os olhos por um segundo. Já sabia o que vinha aí. Desde que a Ana se mudou para Lisboa, há quase quatro anos, as nossas conversas tornaram-se cada vez mais raras e, quando aconteciam, eram como andar sobre vidro partido. Ela sempre tão distante, tão ocupada, tão… zangada.

— Diz, querida — tentei soar calma, mas a ansiedade traía-me.

— Preciso de dinheiro outra vez. O estágio não paga quase nada e o senhorio vai aumentar a renda. Não sei o que fazer…

O António olhou-me de lado, já a adivinhar o tema. Senti-me pequena, esmagada entre a vontade de ajudar e o medo de estar a alimentar um ciclo sem fim.

— Ana, já falámos sobre isto… — comecei, mas ela interrompeu-me.

— Eu sei! Mas achas que é fácil para mim? Achas que eu gosto de pedir? — a voz dela tremia, entre raiva e vergonha.

O silêncio instalou-se entre nós. Lembrei-me dos tempos em que ela era pequena, quando corria para os meus braços depois de um pesadelo. Agora, parecia que eu era o próprio pesadelo dela.

— Vou ver o que posso fazer — disse por fim, sentindo uma lágrima teimosa a escorregar pela face.

Desliguei e fiquei ali sentada, a olhar para o vazio. O António aproximou-se e pousou-me a mão no ombro.

— Não podes continuar assim, Milena. Ela tem de aprender a viver sozinha.

— E se não conseguir? E se lhe acontecer alguma coisa? — rebati, a voz embargada.

Ele suspirou.

— Todos temos de cair para aprender a levantar-nos.

Mas como é que uma mãe aceita ver uma filha cair?

Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei a ouvir os sons da casa: o tic-tac do relógio da sala, o vento a bater nas persianas, o António a ressonar baixinho. Lembrei-me de quando a Ana era adolescente e discutíamos por tudo e por nada: as notas da escola, as saídas à noite, os namorados que eu não aprovava. Sempre achei que era para o bem dela. Agora pergunto-me se não fui dura demais.

No dia seguinte, fui ao banco levantar algum dinheiro. Senti vergonha ao preencher o envelope para enviar à Ana. Uma senhora ao meu lado olhou-me com pena quando me viu a chorar baixinho.

— Está tudo bem? — perguntou ela.

Sorri-lhe sem convicção.

— É só saudade dos filhos — respondi.

Ela assentiu com um olhar compreensivo. Quantas mães portuguesas não passam pelo mesmo?

Quando cheguei a casa, encontrei o António na cozinha a preparar café.

— Mandaste-lhe dinheiro outra vez? — perguntou sem rodeios.

Assenti em silêncio.

— Milena… — começou ele, mas calei-o com um gesto.

— Não consigo fazer diferente. É mais forte do que eu.

Ele abanou a cabeça e saiu para o quintal. Fiquei sozinha com os meus pensamentos e uma chávena de café frio nas mãos.

Os dias passaram e a Ana não ligou mais. Nem uma mensagem a agradecer. O António começou a falar menos comigo; parecia zangado, mas também triste. O silêncio entre nós crescia como uma parede invisível.

Uma tarde, enquanto arrumava as gavetas do quarto da Ana — ainda cheias de cadernos antigos e cartas de amigas — encontrei um diário dela. Hesitei antes de abrir, mas a curiosidade venceu.

As páginas estavam cheias de desabafos: inseguranças, sonhos desfeitos, mágoas antigas. Li frases como “A minha mãe nunca me entende” ou “Sinto-me sozinha mesmo quando estou em casa”. O peito apertou-se-me ainda mais. Será que falhei tanto assim?

Nessa noite, tentei falar com o António sobre o que tinha lido.

— Ela sente-se sozinha desde pequena — confessei-lhe em voz baixa.

Ele olhou-me com tristeza nos olhos.

— Talvez estivéssemos demasiado ocupados com os nossos próprios problemas…

Lembrei-me das discussões dele com o meu sogro sobre dinheiro, das noites em que ele chegava tarde do trabalho e eu já estava exausta demais para ouvir as histórias da Ana sobre a escola. Será que tudo isto nos afastou sem darmos conta?

No domingo seguinte, decidi ligar eu à Ana. O telefone tocou várias vezes até ela atender.

— Mãe? Está tudo bem?

— Só queria ouvir-te — respondi, tentando não chorar.

Do outro lado ouvi um suspiro cansado.

— Desculpa não ter agradecido pelo dinheiro… Tenho andado tão stressada…

— Não faz mal, filha. Só queria saber se estás bem.

Houve um silêncio estranho entre nós. Depois ouvi-a fungar.

— Às vezes sinto que nunca vou conseguir ser independente… Que estou sempre a desiludir-vos…

O meu coração partiu-se em mil pedaços.

— Nunca me desiludiste, Ana. Só quero que sejas feliz — disse-lhe com toda a sinceridade que tinha dentro de mim.

Ela chorou baixinho do outro lado da linha. Eu também chorei. Pela primeira vez em muito tempo senti que estávamos realmente a falar uma com a outra — não só mãe e filha, mas duas mulheres perdidas à procura de um caminho para se reencontrarem.

Depois dessa conversa as coisas não mudaram de um dia para o outro. Continuámos a discutir por vezes; continuei a enviar-lhe dinheiro quando podia; continuei a sentir aquele aperto no peito sempre que via o nome dela no telefone. Mas comecei também a tentar ouvir mais e julgar menos. A perguntar-lhe como estava antes de perguntar se precisava de alguma coisa.

O António demorou mais tempo a perdoar-lhe (e talvez nunca tenha perdoado totalmente), mas também ele começou a perceber que todos temos feridas antigas que nos impedem de sermos quem gostaríamos de ser uns para os outros.

Hoje continuo à espera das chamadas da Ana — às vezes com medo, às vezes com esperança. Mas já não fujo delas. Aprendi que amar é também aceitar as imperfeições dos outros e as nossas próprias falhas como pais.

Pergunto-me muitas vezes: será que alguma vez vamos conseguir ser uma família unida outra vez? Ou será este ciclo de distância e saudade o preço inevitável do amor?

E vocês? Também sentem este medo cada vez que o telefone toca?