Quando a Minha Mãe Virou as Costas: Um Desabafo de Uma Mãe Portuguesa Sozinha
— Não, Mariana, já disse que não posso ficar com os teus filhos. — A voz da minha mãe ecoou fria, quase cortante, pelo telefone. Senti o chão fugir-me dos pés. O relógio marcava 6h45 da manhã e eu já estava atrasada para o turno no supermercado. O mais novo, o Tiago, ainda dormia, mas a Inês e o João já discutiam na cozinha por causa do último iogurte.
A minha mãe, a mesma que me embalava quando tinha febre, agora recusava-se a olhar pelos netos. — Mãe, por favor, só hoje. O Tiago está com tosse, não posso levá-lo para a escola assim. — A minha voz tremeu, misturada com o desespero de quem já não tem mais para onde correr. — Mariana, eu já te disse. Eu já criei os meus filhos. Agora quero descansar. — E desligou. Fiquei a olhar para o telefone, como se ele pudesse devolver-me o colo que perdi.
O meu marido, o Pedro, morreu há dois anos num acidente de mota. Desde então, tudo mudou. A casa ficou fria, os risos rarearam, e eu passei a ser mãe, pai, amiga e inimiga. Os meus filhos olham para mim à procura de respostas que não tenho. O João, com 10 anos, pergunta-me todos os dias se algum dia vamos voltar a ser felizes. A Inês, com 7, faz birra por tudo e por nada. O Tiago, com 3, só quer colo, mas eu não tenho braços para tudo.
Naquele dia, liguei à vizinha, a Dona Rosa, que já tem 70 anos. — Oh menina Mariana, eu fico com o Tiago, mas só até às 11h. Depois tenho de ir ao centro de saúde. — Agradeci-lhe como se me tivesse salvo a vida. Saí de casa a correr, com o coração apertado. No autocarro, olhei para as mãos: estavam vermelhas, gretadas do frio e do detergente. Pensei em como era possível sentir tanta solidão rodeada de gente.
No supermercado, a chefe olhou-me de lado quando cheguei atrasada. — Mariana, assim não pode ser. Já é a terceira vez este mês. — Quis explicar-lhe, mas as palavras ficaram presas na garganta. Senti as lágrimas a quererem cair, mas engoli-as. Não podia dar-me ao luxo de fraquejar. Preciso deste trabalho. Preciso de alimentar os meus filhos.
À hora do almoço, sentei-me sozinha no refeitório. Ouvi as colegas a falarem dos filhos, das férias, dos maridos. Senti inveja. Senti raiva. Senti vergonha por sentir tudo isso. A Ana, uma das colegas, aproximou-se. — Estás bem, Mariana? — Sorri, mas o sorriso saiu torto. — Estou, só estou cansada. — Se precisares de alguma coisa, diz. — Agradeci, mas não disse nada. Não queria ser um peso para mais ninguém.
Quando cheguei a casa, o Tiago estava a dormir no sofá. A Dona Rosa deixou um bilhete: “Estava cansadinho. Dei-lhe um pouco de leite. Se precisares, chama.” Senti uma pontada de gratidão e culpa. Porque é que uma vizinha me ajuda mais do que a minha própria mãe?
À noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me na varanda. O frio entrava pelos ossos, mas eu precisava de respirar. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe: “Mãe, preciso de ti. Sinto-me sozinha.” Apaguei antes de enviar. O orgulho e a mágoa pesavam mais do que a necessidade.
No domingo seguinte, fui a casa da minha mãe. Levei os miúdos. Ela abriu a porta com um ar cansado. — Vieste cá porquê? — Para te ver, mãe. E para os miúdos verem a avó. — Ela olhou para eles, sem sorrir. O João correu para ela, mas ela afastou-se. — Não tenho paciência para barulho. — Senti um nó na garganta. — Mãe, eles são teus netos. — Ela encolheu os ombros. — Mariana, cada um tem a sua vida. Eu já fiz a minha parte.
Voltámos para casa em silêncio. No carro, a Inês perguntou: — Mãe, porque é que a avó não gosta de nós? — Não é isso, filha. Ela só está cansada. — Mas eu própria não acreditava nas minhas palavras.
As contas acumulavam-se na mesa da cozinha. A luz, a água, a renda. O ordenado mal chegava para tudo. Às vezes, à noite, chorava baixinho para não acordar os miúdos. Pensava no Pedro. Se ele estivesse aqui, tudo seria diferente. Mas não estava. E eu tinha de ser forte.
Um dia, o João chegou da escola com um olho negro. — O que aconteceu? — perguntei, assustada. — Chamaram-me pobre. Disseram que o pai morreu porque era estúpido. — O meu coração partiu-se em mil pedaços. Abracei-o com força. — Não ligues ao que dizem, filho. Nós somos uma família. — Mas ele afastou-se. — Não somos nada, mãe. Nem a avó gosta de nós.
Naquela noite, não consegui dormir. Fui à cozinha e sentei-me no chão. Senti-me uma criança outra vez, à espera que alguém me dissesse que tudo ia ficar bem. Mas ninguém veio.
No trabalho, as coisas pioraram. A chefe chamou-me ao gabinete. — Mariana, temos de falar. O teu desempenho tem piorado. Estás sempre cansada, distraída. Assim não pode ser. — Tentei explicar-lhe a minha situação, mas ela não quis saber. — Se não melhorar, vamos ter de repensar o teu contrato.
Saí do gabinete a tremer. Liguei à minha mãe. — Mãe, por favor, ajuda-me. Só preciso que fiques com os miúdos algumas tardes. — Ela suspirou do outro lado. — Mariana, eu não sou tua empregada. Tens de te desenrascar.
Desliguei sem dizer mais nada. Senti raiva, tristeza, abandono. Pensei em tudo o que fiz por ela quando o meu pai morreu. Fui eu que fiquei ao lado dela, que tratei dela quando esteve doente. Agora, quando sou eu a precisar, ela vira-me as costas.
Os dias passaram, todos iguais. Trabalho, casa, filhos, contas. Às vezes, a Dona Rosa ficava com os miúdos uma hora ou duas. Outras vezes, pedia à Ana para me cobrir no trabalho quando tinha de sair mais cedo. Mas sentia-me sempre a mais, sempre um peso.
No Natal, tentei juntar a família. Convidei a minha mãe para jantar connosco. Ela recusou. — Não tenho paciência para festas. — Os miúdos ficaram tristes. Fizemos a ceia só nós quatro. O João olhou para mim e disse: — Mãe, quando é que vamos ser uma família normal?
Não soube responder-lhe. Senti-me falhada. Senti que não era suficiente.
No início do ano, recebi uma carta do tribunal: o senhorio queria aumentar a renda. Não sabia o que fazer. Liguei à Segurança Social, mas disseram-me que o apoio era pouco. Pensei em desistir, em fugir, em deixar tudo para trás. Mas olhei para os meus filhos e soube que não podia.
Um dia, a Dona Rosa caiu nas escadas do prédio. Fui eu que a levei ao hospital. Fiquei com ela até tarde. Quando voltou para casa, agradeceu-me com lágrimas nos olhos. — Mariana, tu és uma boa pessoa. Não deixes que ninguém te faça sentir o contrário.
Essas palavras ficaram comigo. Comecei a procurar ajuda: falei com a assistente social da escola, inscrevi-me num curso à noite para tentar arranjar um trabalho melhor. Pedi apoio psicológico para o João. Aos poucos, comecei a sentir que talvez houvesse esperança.
A minha mãe continuou distante. Às vezes, ligava para saber se estávamos bem, mas nunca se oferecia para ajudar. Aprendi a não esperar nada dela. Aprendi a confiar em mim.
Hoje, olho para os meus filhos a brincar na sala e sinto orgulho. Não somos uma família perfeita, mas somos uma família. Aprendi que às vezes quem mais esperamos que nos ajude é quem mais nos magoa. Mas também aprendi que há bondade onde menos se espera.
E agora pergunto-me: quantas mães como eu vivem esta solidão em silêncio? Quantas vezes o amor de mãe não chega para curar todas as feridas? Se pudesse voltar atrás, faria tudo diferente? E vocês, o que fariam no meu lugar?