Fingimos Não Estar em Casa – Quando Ser Avô Deixa de Ser Alegria
— António, eles estão a chegar outra vez. — A voz da Maria, trémula, ecoou pela sala escura. O relógio marcava cinco da tarde, e a chuva batia forte nas janelas do nosso apartamento em Almada. Eu já tinha apagado as luzes, puxado os cortinados e desligado o telemóvel. Ouvia os passos apressados no corredor, o tilintar das chaves da Ana, a nossa filha, e depois o som seco da campainha.
— Pai! Mãe! Estão aí? — A voz dela, impaciente, misturava-se com o choro do pequeno Tomás e o resmungo da Leonor, a mais velha. — Eu sei que estão aí! — insistiu, batendo à porta com força.
Senti o coração a bater descompassado. Olhei para a Maria, que segurava a minha mão com força, os olhos marejados de lágrimas. Nunca pensei chegar a este ponto: esconder-me dos meus próprios netos, da minha filha. Mas a verdade é que já não aguentava mais.
Quando a Ana se separou do Pedro, há dois anos, foi como se o mundo dela desabasse. E nós, como pais, fizemos o que achámos certo: abrimos a porta, demos colo, cuidámos dos netos, levámos e trouxemos da escola, fizemos sopa e histórias para adormecer. No início, era um prazer. Sentia-me útil, amado, necessário. Mas com o tempo, a rotina tornou-se pesada. A Ana começou a depender de nós para tudo. Os fins de semana deixaram de ser nossos, as noites eram interrompidas por telefonemas aflitos, as férias canceladas porque “os meninos precisam de estabilidade”.
— António, não podemos continuar assim — sussurrou a Maria, numa dessas noites em que o Tomás acordou com febre e a Ana estava a trabalhar até tarde. — Eu já não tenho forças.
Eu também não. Mas como dizer não à nossa filha? Como recusar um colo aos nossos netos? A culpa corroía-me por dentro. Lembrava-me da minha mãe, a Dona Emília, que sempre dizia: “Família é para sempre, filho.”
Mas será que família é sinónimo de sacrifício eterno?
Naquela tarde, enquanto ouvíamos a Ana a insistir à porta, senti-me o pior pai do mundo. Mas também senti, pela primeira vez em muito tempo, um alívio estranho. O silêncio da casa, a ausência do barulho das crianças, o cheiro do café acabado de fazer só para mim e para a Maria. Era como se, por um instante, a nossa vida nos pertencesse de novo.
— Eles vão perceber? — murmurou a Maria, limpando uma lágrima.
— Não sei, Maria. Mas hoje… hoje eu não consigo — respondi, a voz embargada.
A Ana acabou por desistir. Ouvi os passos a afastarem-se, o elevador a descer. Ficámos ali, sentados no escuro, sem coragem de acender as luzes. O silêncio era pesado, mas também reconfortante.
No dia seguinte, o telemóvel tocou cedo. Era a Ana.
— Pai, ontem tentei falar convosco. O Tomás estava doente, precisava mesmo de ajuda. — A voz dela era dura, magoada.
— Desculpa, filha. Estávamos a descansar. — Senti-me pequeno, envergonhado.
— Descansar? Vocês têm sempre tempo para tudo menos para mim! — gritou, antes de desligar.
A Maria chorou o resto da manhã. Eu saí para comprar pão, mas acabei por dar voltas pelo bairro, sem rumo. Senti o peso dos olhares dos vizinhos, como se todos soubessem da nossa traição. No café do senhor Joaquim, ouvi conversas sobre filhos e netos, sobre a alegria de ter a casa cheia. Senti inveja e raiva. Porque é que para nós era diferente?
Ao almoço, a Maria tentou animar-se. Fizemos arroz de polvo, como nos velhos tempos. Mas o silêncio entre nós era denso.
— António, achas que a Ana vai perdoar-nos? — perguntou, com a voz embargada.
— Não sei, Maria. Mas eu já não consigo ser tudo para todos. — Olhei para as minhas mãos, enrugadas, e pensei em tudo o que tinha abdicado nos últimos anos: os passeios à beira-rio, as tardes de leitura, as viagens que nunca fizemos.
Na semana seguinte, a Ana não nos ligou. Nem uma mensagem. O silêncio dela era uma faca afiada. Os netos também não apareceram. A casa parecia maior, mais fria. A Maria tentava ocupar-se com as plantas, eu lia o jornal de ponta a ponta. Mas havia um vazio impossível de preencher.
Uma tarde, a campainha tocou. Era a Ana, sozinha. Entrou sem dizer palavra, sentou-se à mesa da cozinha. Ficámos os três em silêncio durante minutos intermináveis.
— Preciso de vocês — disse ela, finalmente, com a voz trémula. — Mas também percebo que estão cansados. Só… só não sei o que fazer sozinha.
A Maria levantou-se, abraçou-a. Eu fiquei sentado, sem saber o que dizer. Queria pedir desculpa, mas também queria gritar que tínhamos direito à nossa vida.
— Filha, nós amamos-te. Amamos os teus filhos. Mas também precisamos de tempo para nós. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
A Ana chorou. Chorámos todos. Ficámos ali, abraçados, como se o tempo tivesse parado.
Nos dias seguintes, tentámos encontrar um equilíbrio. A Ana procurou uma ama para os fins de semana. Nós começámos a sair mais, a redescobrir pequenos prazeres: um café na esplanada, um passeio pelo parque da Paz, um cinema ao sábado à noite.
Os netos continuam a vir cá a casa, mas agora é diferente. Já não é obrigação, é escolha. E, curiosamente, sinto-me mais disponível, mais feliz quando estou com eles.
Ainda sinto culpa, claro. A voz da minha mãe ecoa-me na cabeça. Mas aprendi que amar também é saber dizer basta. Que não somos menos pais ou avós por cuidarmos de nós.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós vivem presos à ideia de que só existimos para os outros? Quantos escondem o cansaço atrás de sorrisos forçados? Será que é possível amar sem nos perdermos de nós próprios?
E vocês, já sentiram isto? Já tiveram medo de escolher por vocês? O que fariam no meu lugar?