O que faz o meu marido às quintas-feiras?
— Onde vais tu outra vez, Miguel? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo o coração a bater descompassado no peito. Ele olhou-me de relance, já com o casaco vestido, e respondeu com aquela calma que me irritava: — É quinta-feira, sabes que vou ao grupo de xadrez com o Rui e o Paulo. — E se eu te dissesse que recebi uma carta anónima hoje? — atirei, sem conseguir controlar o tremor na voz.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Miguel ficou parado à porta, a mão na maçaneta, e eu vi-lhe nos olhos um brilho estranho, uma hesitação que nunca tinha visto antes. — Que carta? — perguntou, finalmente, mas já não era o mesmo homem seguro de sempre. Senti um arrepio percorrer-me a espinha. Não era só ciúme, era medo. Medo de perder tudo o que construímos em vinte anos de casamento, medo de descobrir que, afinal, nunca conheci verdadeiramente o homem com quem partilhei metade da minha vida.
A carta era curta, escrita à mão, com uma caligrafia apressada: “O teu marido não está onde diz estar às quintas-feiras. Abre os olhos.” Passei o dia inteiro a olhar para aquele papel, a tentar decifrar quem a teria enviado, a imaginar mil cenários. O Miguel sempre foi um homem reservado, mas nunca me deu motivos para desconfiar. Ou talvez tenha dado, e eu nunca quis ver.
— Não sei do que estás a falar, Mariana — disse ele, desviando o olhar. — Isto é ridículo. — Ridículo? — repeti, sentindo a raiva a crescer. — Então mostra-me o telemóvel. Mostra-me as mensagens com o Rui e o Paulo. — Mariana, por amor de Deus… — Miguel suspirou, mas não se mexeu. — Estás a ouvir-te? Achas mesmo que eu te ia mentir?
O silêncio instalou-se de novo. Oiço o tique-taque do relógio da sala, o som dos carros a passar na rua. Sinto-me ridícula, mas não consigo parar. — Se não tens nada a esconder, porque não me mostras?
Ele hesitou, e nesse momento soube. Soube que havia algo. Não sabia o quê, mas havia. Miguel saiu de casa sem dizer mais nada. Fiquei ali, sozinha, com a carta na mão e o coração em pedaços.
As horas passaram devagar. Liguei à minha irmã, Sofia. — Achas que estou a exagerar? — perguntei-lhe, a voz embargada. — Não, mana. Se sentes que algo não está bem, segue o teu instinto. Mas também não te precipites. — E se for verdade? — Se for verdade, vais ter de decidir o que queres para ti. Não te esqueças de ti própria.
Na sexta-feira, Miguel voltou tarde. Não me olhou nos olhos. O jantar foi um silêncio pesado, interrompido apenas pelo tilintar dos talheres. O nosso filho, Tomás, percebeu logo que algo não estava bem. — Mãe, o pai fez alguma coisa? — Não, filho. Vai fazer os trabalhos de casa.
Durante dias, tentei agir normalmente. Fui trabalhar, levei o Tomás ao futebol, fiz compras no Pingo Doce, sorri às vizinhas. Mas por dentro, estava a desmoronar-me. Comecei a reparar em detalhes que antes me escapavam: o cheiro diferente na roupa do Miguel, a forma como ele evitava o meu olhar, as mensagens que recebia e apagava rapidamente.
No domingo, decidi segui-lo. Senti-me uma personagem de novela barata, mas precisava de saber. Esperei que ele saísse de casa e fui atrás, mantendo distância. O carro dele parou num bairro antigo de Lisboa, perto da Graça. Vi-o entrar num prédio velho. Esperei quase uma hora, até que o vi sair acompanhado de uma mulher. Não era bonita, nem jovem. Mas riam-se os dois, cúmplices. O Miguel nunca se ria assim comigo.
Voltei para casa em choque. Passei a noite em claro, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tínhamos vivido juntos. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos na faculdade, das férias em Tavira, do nascimento do Tomás. Perguntei-me onde tinha falhado. O que é que eu não vi? O que é que ele procurava noutra mulher?
Na segunda-feira, confrontei-o. — Segui-te ontem. Vi-te com ela. — O Miguel ficou branco. Sentou-se à mesa, a cabeça entre as mãos. — Mariana, desculpa. Eu não queria que soubesses assim. — Então é verdade? — perguntei, já sem lágrimas. — Há quanto tempo? — Há quase um ano. Conheci a Teresa no trabalho. Começou por ser só conversa, depois… — E o Rui e o Paulo? O xadrez? — Era tudo mentira. Eu não sabia como te dizer. Não queria magoar-te, nem perder o Tomás.
Senti-me vazia. Tudo o que tínhamos construído parecia uma mentira. — E agora? — perguntei, sem saber o que esperar. — Não sei. Eu gosto de ti, Mariana. Mas também gosto dela. Sinto-me perdido.
Durante semanas, vivemos como estranhos na mesma casa. O Tomás percebeu tudo. Começou a ter más notas, a fechar-se no quarto. A minha mãe ligava todos os dias, preocupada. — Mariana, tens de pensar em ti e no teu filho. Não fiques presa ao passado.
Procurei ajuda numa psicóloga. Falei-lhe do medo de ficar sozinha, da vergonha, da raiva. — Mariana, não tens culpa das escolhas dele. Tens direito a ser feliz, com ou sem o Miguel.
Um dia, ao chegar a casa, encontrei o Miguel a fazer as malas. — Vou sair, Mariana. Preciso de tempo para pensar. Não quero continuar a magoar-te. — E o Tomás? — Vou vê-lo sempre que ele quiser. Não vou desaparecer.
Fechei a porta atrás dele e desabei. Chorei tudo o que tinha para chorar. Depois, olhei-me ao espelho e vi uma mulher cansada, mas viva. Aos poucos, comecei a reconstruir-me. Voltei a sair com amigas, inscrevi-me num curso de fotografia, levei o Tomás a passear pelo país. Descobri que ainda era capaz de rir.
O Miguel tentou voltar meses depois. Disse que tinha terminado com a Teresa, que sentia a minha falta, que queria tentar outra vez. Olhei para ele e percebi que já não era o homem da minha vida. — Não posso, Miguel. Preciso de me escolher a mim desta vez.
Hoje, olho para trás e vejo tudo o que perdi, mas também tudo o que ganhei. Aprendi que o amor não é garantia de felicidade, que confiar em alguém é um risco, mas também uma escolha. E pergunto-me: quantas de nós vivem agarradas a uma ilusão por medo de enfrentar a verdade? E vocês, o que fariam se recebessem uma carta como aquela?