Encontrei a Marta no Pingo Doce: O Dia em que a Minha Vida Mudou para Sempre

— Não pode ser ela… — pensei, enquanto as minhas mãos tremiam ao pousar o pacote de arroz na passadeira do Pingo Doce. O cheiro a pão quente misturava-se com o perfume doce que vinha da mulher à minha frente. Era impossível não reconhecer aquele andar firme, o cabelo castanho agora mais curto, os saltos altos que ela nunca usava quando estava comigo. Marta. A minha Marta. Ou melhor, a Marta que já não era minha há quase cinco anos.

Ela estava a sorrir para a funcionária da caixa, um sorriso aberto, daqueles que eu já não via há muito tempo. O sorriso que ela perdeu nos últimos anos do nosso casamento, quando as discussões eram mais frequentes do que os beijos, quando o silêncio à mesa era mais pesado do que qualquer palavra dita. Senti um nó na garganta. Tentei desviar o olhar, mas era impossível. Ela parecia tão diferente, tão… feliz.

— Bom dia, querida! — disse a funcionária, reconhecendo-a. — Já não a via há tanto tempo! Está tão elegante!

Marta riu-se, um riso leve, quase musical. — Obrigada, D. Rosa. A vida tem destas coisas, não é? Às vezes precisamos de mudar.

A vida tem destas coisas… Senti o peso dessas palavras como se fossem pedras atiradas ao meu peito. Eu é que precisava de mudar, pensei. Mas nunca tive coragem. Sempre fui demasiado orgulhoso, demasiado teimoso para admitir que estava a perder tudo o que era importante.

Quando chegou a minha vez na caixa, D. Rosa olhou para mim com um ar estranho, como se me reconhecesse de algum lado. Talvez se lembrasse das vezes em que eu e Marta fazíamos compras juntos, discutindo sobre qual azeite levar ou quem ia cozinhar naquela noite. Agora, estava ali sozinho, com meia dúzia de produtos e uma solidão que me pesava nos ombros.

Saí do supermercado apressado, mas não consegui evitar olhar para trás. Marta estava a sair também, com um saco de compras numa mão e o telemóvel na outra. Vi-a rir-se ao telefone, provavelmente com alguém que agora ocupava o lugar que já foi meu. Senti uma pontada de ciúmes, misturada com arrependimento.

Lembrei-me do dia em que tudo acabou. Foi numa noite fria de janeiro, na nossa casa em Almada. Tínhamos discutido por causa de uma coisa insignificante — acho que era sobre as contas da luz — mas a discussão cresceu, como tantas outras antes dela. No fim, Marta olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas e disse:

— Eu já não aguento mais, Rui. Não sou feliz assim. E tu também não és.

Na altura, não respondi. Fiquei calado, como sempre fazia quando não sabia o que dizer. No dia seguinte, ela fez as malas e saiu. Nunca mais voltou.

Durante meses, vivi em piloto automático. Ia trabalhar no escritório de contabilidade em Lisboa, voltava para casa, jantava sozinho em frente à televisão. Os amigos afastaram-se aos poucos; alguns ficaram do lado dela, outros simplesmente desapareceram. A minha mãe ligava-me todos os dias, preocupada, mas eu respondia sempre da mesma forma:

— Está tudo bem, mãe.

Mas não estava. E nunca mais esteve.

O reencontro com Marta naquele supermercado fez-me perceber o quanto tinha mudado — ou melhor, o quanto ela tinha mudado e eu tinha ficado parado no tempo. Ela parecia mais leve, mais segura de si. Eu continuava preso ao passado, às mágoas e aos erros que cometi.

Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo o barulho dos carros na rua e pensando em tudo o que podia ter feito diferente. Devia ter ouvido mais, falado menos. Devia ter dito mais vezes que a amava, mesmo quando estava zangado. Devia ter lutado por nós.

No dia seguinte, decidi ligar ao meu irmão, Pedro. Não falávamos há meses, desde uma discussão parva sobre a herança do nosso pai.

— Rui? Está tudo bem? — perguntou ele, surpreso.

— Preciso de falar contigo — respondi, a voz embargada.

Encontrámo-nos num café perto do rio Tejo. Pedro olhou para mim com aquele ar de irmão mais novo que sempre me irritou e confortou ao mesmo tempo.

— Viste a Marta, não foi?

Fiquei sem palavras. Como é que ele sabia?

— A mãe contou-me que ela voltou a morar aqui perto — explicou. — Ouvi dizer que está bem…

— Está ótima — interrompi, sentindo a voz tremer. — E eu… eu sinto que fiquei para trás.

Pedro ficou calado durante uns segundos. Depois pousou a mão no meu ombro.

— Talvez seja altura de seguires em frente também, Rui. Não podes viver preso ao passado.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Mas como é que se segue em frente quando tudo o que queremos é voltar atrás?

No trabalho, comecei a distrair-me mais do que o habitual. O chefe chamou-me ao gabinete.

— Rui, tens andado estranho ultimamente. Precisas de férias?

Quis responder que precisava de uma nova vida, mas limitei-me a acenar com a cabeça.

Nessa noite, ao chegar a casa, encontrei uma carta na caixa do correio. Era da Marta. O meu coração disparou.

“Rui,

Vi-te no supermercado ontem. Queria ter falado contigo, mas achei melhor não. Não sabia se estavas preparado para isso. Só queria dizer-te que espero que estejas bem. Sei que as coisas não correram como queríamos, mas desejo-te tudo de bom.

Um abraço,
Marta”

Li a carta dezenas de vezes. Chorei como há muito não chorava. Senti raiva de mim próprio por ter deixado tudo chegar a este ponto. Mas também senti uma estranha paz ao perceber que ela estava bem, que tinha seguido em frente.

Decidi escrever-lhe de volta. Não para pedir desculpa — já pedi desculpa vezes demais sem mudar nada — mas para agradecer.

“Marta,

Obrigado pela tua carta. Fiquei feliz por te ver bem. Espero que um dia possamos conversar sem mágoas, só com saudade do que fomos e respeito pelo que somos agora.

Rui”

Não sei se ela vai responder. Talvez não precise. Talvez esta seja a minha oportunidade de finalmente recomeçar.

Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só vida? Quantas vezes podemos recomeçar antes de perdermos a esperança? E vocês, já sentiram que ficaram presos ao passado enquanto o mundo à vossa volta seguia em frente?