“Mãe, posso voltar para casa por umas semanas?” – Entre tempestades familiares e o abrigo do colo materno

“Mãe, posso voltar para casa por umas semanas?”

A voz da Mariana do outro lado da linha tremia, como se cada palavra pesasse toneladas. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e eu, sentada à mesa, sentia o coração apertar-se no peito. A última vez que ela me ligou a esta hora foi quando o avô morreu. “Claro que sim, filha. Quando quiseres. A porta está sempre aberta.”

Desliguei o telefone e fiquei ali, imóvel, a olhar para o vazio. O silêncio da casa parecia mais denso, como se pressentisse a tempestade que se aproximava. Mariana, a minha menina, voltava para casa. Mas não era a mesma Mariana que saiu há cinco anos, cheia de sonhos e promessas ao lado do Pedro. Agora, vinha sozinha, carregada de mágoas e perguntas sem resposta.

Na manhã seguinte, acordei cedo. Preparei o quarto dela, troquei os lençóis, abri as janelas para deixar entrar o cheiro do mar. O gato, o Tobias, rondava-me as pernas, curioso com a agitação. “A Mariana vem aí, Tobias. Vais ver como ela cresceu.”

Quando Mariana chegou, trazia apenas uma mala pequena e um olhar perdido. Abraçámo-nos no corredor, um abraço apertado, mas cheio de hesitação. “Obrigada, mãe.”

Durante dias, andámos às voltas uma com a outra, como dois gatos desconfiados. Eu queria perguntar-lhe tudo: o que aconteceu com o Pedro? Porquê agora? Mas calei-me. Aprendi, com os anos, que há dores que só se confessam quando estamos prontos.

Na primeira noite, jantámos em silêncio. O som dos talheres era quase ensurdecedor. Até que ela largou o garfo e murmurou:

— Ele traiu-me, mãe. Com uma colega do trabalho. E eu… eu não consegui perdoar.

O mundo parou por um instante. Senti uma raiva surda pelo Pedro, mas também uma tristeza funda pela minha filha. “Oh, filha…”, disse apenas, estendendo-lhe a mão por cima da mesa.

Os dias seguintes foram um vaivém de emoções. Mariana chorava à noite no quarto dela. Eu ouvia-a através das paredes e sentia-me impotente. Queria protegê-la de tudo, mas sabia que não podia viver a dor por ela.

Uma tarde, enquanto dobrávamos roupa na varanda, Mariana perguntou:

— Mãe, tu alguma vez pensaste em deixar o pai?

Fiquei sem resposta por uns segundos. O vento brincava com os lençóis e eu revivi na memória as discussões com o António, os silêncios pesados depois das brigas.

— Pensei, sim — confessei. — Mais do que uma vez. Mas depois olhava para ti e para o teu irmão e achava que devia aguentar mais um pouco.

— E valeu a pena?

Suspirei.

— Não sei, filha. Às vezes penso que sim, outras vezes arrependo-me de não ter tido coragem de ir embora mais cedo.

Mariana ficou calada, olhando para o horizonte. Senti que ali começava uma conversa que nunca tínhamos tido.

Nessa noite, ela trouxe à mesa velhos ressentimentos.

— Sempre senti que tu escolhias o pai em vez de mim. Que ficavas do lado dele mesmo quando ele era injusto comigo.

Aquelas palavras doeram mais do que qualquer bofetada.

— Não era isso, Mariana… Eu tentava manter a paz em casa. Achava que era melhor assim.

— Pois não foi — respondeu ela, com lágrimas nos olhos. — Eu sentia-me sozinha.

Ficámos as duas em silêncio, cada uma a digerir as próprias mágoas.

Com o passar das semanas, Mariana foi-se abrindo mais. Começou a sair para pequenas caminhadas pela vila, reencontrou a amiga Rita da escola primária e até voltou a pintar — algo que não fazia desde adolescente. Eu observava-a à distância, orgulhosa e ao mesmo tempo cheia de medo pelo futuro dela.

Um dia, ao pequeno-almoço, ela disse:

— O Pedro ligou-me ontem à noite. Quer falar comigo. Diz que se arrepende.

O meu instinto foi dizer-lhe para não voltar atrás. Mas calei-me. Aprendi que os filhos têm de fazer os próprios caminhos, mesmo que nos custe vê-los tropeçar.

— E tu? O que sentes?

Ela encolheu os ombros.

— Não sei. Sinto-me perdida. Parte de mim quer perdoar, outra parte quer seguir em frente sozinha.

Abracei-a.

— Seja qual for a tua decisão, estarei aqui para ti.

Nessa tarde, fui ao sótão buscar uma caixa antiga de cartas e fotografias. Sentámo-nos as duas no chão da sala a folhear memórias: o casamento dos meus pais, as férias em Vila Nova de Milfontes, os desenhos da Mariana quando era pequena.

— Sabes, mãe? Às vezes penso que somos todas feitas de pedaços partidos — disse ela, olhando para uma fotografia nossa na praia.

— Talvez seja isso que nos torna humanas — respondi.

Os dias foram passando e Mariana começou a fazer planos: pensou em procurar trabalho na vila, falou em alugar um pequeno apartamento perto do mar. O Pedro continuava a ligar-lhe, insistente. Uma noite, ouvi-os discutir ao telefone:

— Não é assim tão simples! — gritava ela. — Tu traíste-me! Achas que basta pedires desculpa?

Depois desligou e ficou sentada no escuro da sala. Sentei-me ao lado dela e ficámos ali em silêncio até ao nascer do sol.

No meio deste turbilhão, também eu fui obrigada a confrontar os meus próprios fantasmas: a solidão depois do divórcio com o António, os sonhos adiados por causa dos filhos, as noites em claro a pensar se teria feito tudo certo.

Uma manhã de domingo, Mariana entrou na cozinha com um sorriso tímido:

— Mãe… obrigada por me deixares voltar. Acho que precisava mesmo deste tempo contigo.

Sorri-lhe e senti uma paz há muito esquecida.

Hoje, meses depois daquele telefonema inesperado, Mariana já não é a mesma mulher que chegou aqui de mala na mão e olhos vazios. Encontrou forças para recomeçar — sozinha — e eu aprendi a respeitar as escolhas dela sem tentar protegê-la de tudo.

Às vezes pergunto-me: será que alguma vez conseguimos realmente curar as feridas do passado? Ou aprendemos apenas a viver com elas?

E vocês? O que fariam no meu lugar?