Entre o Amor e a Dor: O Segredo da Minha Família

— Não é justo, mãe! — gritou Clara, com os olhos marejados, enquanto a chuva batia forte nas janelas da sala. Eu estava sentada na poltrona, as mãos trémulas sobre o colo, sentindo o coração apertar a cada palavra. Helena, minha filha, mantinha-se de pé, os braços cruzados, o olhar frio e distante. João, o mais novo, estava encolhido no sofá, fingindo não ouvir, enquanto Tiago, o do meio, olhava para o chão, como se procurasse ali uma resposta para o que se passava.

Aquela noite foi o culminar de anos de silêncios e pequenas injustiças. Sempre percebi que Helena tinha uma predileção por João. Talvez por ele ter nascido depois de uma gravidez difícil, talvez por ser mais frágil, mais dependente. Mas, com o tempo, Clara e Tiago começaram a sentir o peso desse favoritismo. Eu via, mas calei-me. Afinal, quem sou eu para interferir na educação dos netos? Mas agora, vendo Clara a chorar, percebi que o meu silêncio era também uma forma de culpa.

— Helena, por favor, ouve a tua filha — tentei intervir, a voz embargada. — Isto não pode continuar assim.

Helena virou-se para mim, os olhos faiscando. — Mãe, não te metas. Isto é entre mim e os meus filhos.

Mas era impossível não me meter. Eu vi Clara crescer, vi o brilho dela apagar-se cada vez que a mãe elogiava João por qualquer coisa mínima, enquanto as conquistas de Clara e Tiago passavam despercebidas. Vi Tiago tornar-se um rapaz calado, sempre a tentar agradar, sempre a tentar ser visto. E vi João, sem culpa própria, crescer convencido de que o mundo lhe devia tudo.

Lembro-me de um Natal, há três anos. Clara tinha feito um desenho lindíssimo da família, com todos nós juntos. Entregou-o à mãe, com um sorriso tímido. Helena agradeceu, mas logo a seguir abriu o presente de João — um simples porta-chaves comprado na escola — e desfez-se em elogios. Clara ficou ali, com o desenho nas mãos, como se tivesse desaparecido.

— Porque é que nunca sou suficiente para ti, mãe? — perguntou Clara, naquela noite de tempestade.

Helena hesitou. — Não digas disparates, filha. Eu amo-vos a todos por igual.

Mas todos sabíamos que não era verdade. O amor de Helena era como o sol de inverno: aquecia, mas não chegava a todos.

Tiago, sempre o pacificador, tentou intervir. — Mãe, a Clara só quer sentir-se amada. Eu também.

O silêncio caiu pesado. Eu queria gritar, queria sacudir Helena, fazê-la ver o que estava a fazer aos filhos. Mas as palavras ficaram presas na garganta. Senti-me impotente, como tantas vezes antes.

Naquela noite, Clara saiu de casa. Voltou tarde, os olhos vermelhos. No dia seguinte, não quis ir à escola. Tiago fechou-se no quarto. João, sem perceber bem o que se passava, continuou a ser o centro das atenções.

Os dias passaram, mas a ferida ficou. Comecei a notar pequenas mudanças: Clara tornou-se mais distante, Tiago mais ansioso. Helena, talvez por orgulho, talvez por cegueira, recusava-se a admitir o problema. Eu tentava compensar, dava mais atenção a Clara e Tiago, mas sabia que o amor de avó não substitui o amor de mãe.

Certa tarde, Clara veio ter comigo à cozinha. — Avó, achas que a mãe algum dia vai gostar de mim como gosta do João?

Senti um nó na garganta. — Oh, minha querida, a tua mãe ama-te à sua maneira. Mas às vezes as pessoas não sabem demonstrar.

Clara abanou a cabeça. — Eu só queria sentir que faço parte da família.

Aquelas palavras ficaram a ecoar em mim. Lembrei-me da minha própria infância, das vezes em que me senti invisível perante os meus irmãos. Prometi a mim mesma que nunca deixaria que isso acontecesse aos meus netos. Mas ali estava eu, a ver a história repetir-se.

Decidi falar com Helena. Esperei que os miúdos estivessem na escola e sentei-me com ela à mesa da cozinha.

— Helena, precisamos de conversar. Os teus filhos estão a sofrer. Não vês o que estás a fazer à Clara e ao Tiago?

Ela suspirou, exausta. — Mãe, eu faço o melhor que posso. O João precisa mais de mim. Sempre foi mais sensível.

— E a Clara? E o Tiago? Eles também precisam de ti. Só que aprenderam a não pedir.

Helena passou as mãos pelo rosto. — Eu não sei como mudar, mãe. Sinto-me tão cansada. O pai deles foi-se embora, tu sabes como foi difícil. O João era tão pequeno…

— Mas agora são todos grandes. E todos precisam de ti. Não podes continuar a viver no passado.

Ela chorou. Pela primeira vez em muitos anos, vi a minha filha desabar. Abracei-a, mas sabia que as feridas não se curam com um abraço.

Os meses seguintes foram de altos e baixos. Helena tentou mudar, mas os hábitos são difíceis de quebrar. Clara e Tiago começaram a sair mais com amigos, a passar menos tempo em casa. João, sentindo-se perdido, procurava-me cada vez mais. Eu fazia o possível para ser o porto seguro de todos, mas sentia-me a afundar.

Um dia, Clara chegou a casa com as notas do final do período. Tinha tido excelentes resultados. Mostrou-me, orgulhosa. — Avó, olha! Passei a tudo com distinção!

— Que maravilha, minha querida! — abracei-a, emocionada. — Tens de mostrar à tua mãe.

Clara hesitou. — Para quê? Ela vai dizer que o João também teve boas notas.

O meu coração partiu-se um pouco mais. Fui eu quem mostrou as notas a Helena. — Olha para isto, filha. A Clara está a brilhar. Não vês?

Helena sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos. — Sim, mãe. Estou orgulhosa.

Mas Clara percebeu. E eu também.

O tempo passou. Clara entrou na universidade, Tiago foi trabalhar para o estrangeiro. João ficou em casa, cada vez mais dependente da mãe. Helena envelheceu depressa, consumida pela culpa e pelo arrependimento. Eu, já com os ossos cansados, via a família desmoronar-se à minha frente.

Hoje, sento-me nesta mesma poltrona, a olhar para as fotografias na parede. Vejo os rostos dos meus netos, tão diferentes, tão distantes. Pergunto-me onde errei. Teria sido diferente se eu tivesse falado mais cedo? Se tivesse tido coragem de enfrentar Helena antes que fosse tarde?

Às vezes, Clara telefona-me. Fala-me da vida, dos amigos, do trabalho. Mas nunca fala da mãe. Tiago manda mensagens de vez em quando, diz que está bem, mas sinto a saudade nas entrelinhas. João ainda vive com Helena, preso a uma infância que nunca terminou.

O que é uma família senão um conjunto de escolhas e silêncios? Será que o amor pode mesmo curar todas as feridas? Ou há dores que ficam para sempre, escondidas nos cantos da casa?

E vocês, o que fariam no meu lugar? Teriam tido coragem de enfrentar a verdade antes que fosse tarde demais?