Setenta Anos de Silêncio: Entre Gritos e Sussurros de uma Casa Cheia

— Mãe, por favor, não mexas aí! — gritou a minha filha, Ana, da cozinha, enquanto eu tentava arrumar a louça do pequeno-almoço. O tom dela era impaciente, quase agressivo, e eu, como tantas outras vezes, senti o rosto arder de vergonha. Era a minha casa, ou pelo menos fora durante quarenta anos, mas agora parecia que cada canto me rejeitava.

O relógio marcava dez horas da manhã e o sol entrava tímido pela janela da sala. O cheiro do café misturava-se ao perfume das flores que eu mesma plantara no jardim, mas já não me pertenciam. Desde que o meu marido, António, partira há três anos, a casa encheu-se de gente: Ana, o genro Rui, os meus dois netos adolescentes, e até a minha irmã mais nova, Teresa, que viera “ajudar” depois da minha queda. Mas, no fundo, eu sabia: ninguém estava ali por mim.

Ouvi risos abafados vindos do corredor. Os rapazes jogavam consola, ignorando o meu “bom dia”. Teresa falava ao telefone, rindo alto, como se quisesse provar que ainda era jovem. Ana e Rui discutiam baixinho sobre contas e despesas. Eu era um móvel antigo, útil apenas quando alguém precisava de um favor ou de um ouvido surdo para desabafos que não me diziam respeito.

Lembro-me de quando a casa era cheia de vida — mas era a minha vida. Os almoços de domingo, o António a contar piadas secas, as crianças pequenas a correrem pelo quintal. Agora, tudo era rotina e obrigação. Senti uma pontada no peito ao perceber que ninguém perguntava como eu estava. Ninguém queria saber dos meus sonhos ou das minhas dores.

— Mãe, podes ir buscar o pão? — pediu Ana, sem olhar para mim. — E vê se não te esqueces do troco desta vez.

Peguei na carteira com mãos trémulas. O caminho até à padaria era curto, mas cada passo parecia pesar toneladas. Na rua, os vizinhos cumprimentavam-me com aquele sorriso piedoso que se reserva aos velhos. “Coitada da Dona Maria, agora vive cheia de gente e tão sozinha…” — ouvi uma vez, sem querer, atrás de uma janela entreaberta.

Na padaria, a senhora Rosa olhou-me com ternura:

— Então, Dona Maria, como vai isso?

— Vai-se andando, minha querida. — respondi, forçando um sorriso.

— A casa cheia deve dar alegria…

Quis dizer-lhe que não era bem assim. Que a casa cheia pode ser o lugar mais solitário do mundo. Mas calei-me. Voltei para casa com o pão e o troco contado ao cêntimo.

Ao entrar, ouvi Rui reclamar:

— Sempre a mesma coisa, Ana! A tua mãe mexe em tudo, depois não encontro nada!

Senti-me pequena. Sentei-me no sofá e olhei para as mãos. Mãos que já foram firmes, que criaram filhos, que trabalharam no campo e na fábrica. Agora tremiam de inutilidade.

À noite, o jantar era sempre um campo de batalha. Teresa criticava a comida:

— Maria, puseste sal a mais outra vez!

Os netos nem olhavam para mim. Ana suspirava alto, como se a minha presença fosse um fardo. Rui falava do trabalho, ignorando qualquer tentativa minha de conversa.

Uma noite, não aguentei:

— Vocês lembram-se de quando esta casa era diferente? Quando ríamos juntos?

O silêncio caiu como uma pedra. Ana olhou-me com impaciência:

— Mãe, estás cansada. Vai descansar.

Subi para o quarto com lágrimas nos olhos. Olhei para a fotografia do António na mesinha de cabeceira.

— Fazes-me tanta falta… — sussurrei.

Os dias passavam iguais. O médico dizia que eu estava saudável para a idade, mas ninguém via as feridas invisíveis. Ouvia conversas sobre lares de idosos, sobre vender a casa. Um dia, apanhei Rui ao telefone:

— Não podemos continuar assim. A tua mãe já não é a mesma. Está sempre a atrapalhar.

Senti uma raiva surda. Eu era um estorvo na minha própria casa. Comecei a sair mais vezes. Ia ao jardim falar com as flores, sentava-me no banco do parque a ver crianças brincarem. Ali, pelo menos, ninguém me mandava calar.

Certa tarde, encontrei o velho Manuel, vizinho de longa data. Sentou-se ao meu lado e perguntou:

— Maria, estás bem?

Desabei. Contei-lhe tudo. Ele ouviu em silêncio e depois disse:

— Não deixes que te apaguem. Tu és mais do que pensas.

Aquelas palavras ficaram comigo. Naquela noite, escrevi uma carta para a família. Disse-lhes como me sentia invisível, como doía ser ignorada. Disse-lhes que precisava de respeito e não de piedade.

No dia seguinte, deixei a carta na mesa do pequeno-almoço. Saí para o jardim e esperei. Ouvi vozes alteradas dentro de casa. Ana veio ter comigo, olhos vermelhos:

— Mãe… desculpa. Não sabíamos que te sentias assim.

Rui ficou calado. Teresa chorou. Os netos abraçaram-me pela primeira vez em meses.

As coisas não mudaram de um dia para o outro. Ainda há silêncios pesados e gestos impacientes. Mas agora, pelo menos, ouvem-me. Às vezes, Ana senta-se comigo no jardim. Rui ajuda-me a arrumar a cozinha. Os netos contam-me segredos.

A solidão não desapareceu por completo. Mas aprendi que é preciso lutar para não ser apagada. Que a dignidade não se pede — conquista-se.

E agora pergunto-me: quantos de nós vivem rodeados de gente e mesmo assim se sentem invisíveis? Será que um dia vamos aprender a ver realmente quem está ao nosso lado?