Quando Ninguém Vem: A História de um Irmão Esquecido
— Vais mesmo deixá-lo lá sozinho? — A voz da minha mãe ecoava no telefone, carregada de uma mistura de raiva e desespero. Eu olhava para a janela do meu quarto, onde a chuva batia com força, como se quisesse lavar tudo o que estava por dentro e por fora.
Não respondi de imediato. O silêncio entre nós era pesado, como sempre foi desde aquela noite em que tudo mudou. O meu irmão, o Rui, estava no hospital, no serviço de neurologia do Hospital de Santa Maria. Tinha sofrido mais uma crise, consequência de anos de excessos e escolhas erradas. E agora, era eu quem tinha de ir buscá-lo. Mas será que queria? Será que conseguia?
Fechei os olhos e lembrei-me da última vez que estivemos juntos, há quase dois anos. Foi no Natal, na casa da nossa mãe em Setúbal. O Rui chegou atrasado, com um sorriso falso e os olhos vermelhos. Trazia consigo aquele cheiro a álcool e a noites mal dormidas. Sentou-se à mesa como se nada fosse, mas ninguém conseguia ignorar o elefante na sala. O pai não lhe dirigiu a palavra durante toda a noite. Eu tentei manter a conversa leve, mas tudo soava forçado.
— Achas que ele vai mudar? — perguntei à minha mãe naquela noite, enquanto lavávamos a loiça.
Ela encolheu os ombros, os olhos marejados de lágrimas. — Ele é teu irmão. Não podemos desistir dele.
Mas eu já tinha desistido. Ou pelo menos pensava que sim.
Agora, dois anos depois, estava ali parado, com o telefone na mão e a vida suspensa entre o passado e o presente. A minha mãe esperava uma resposta. O Rui esperava por mim — ou talvez não esperasse nada de ninguém.
— Eu vou — disse finalmente, sentindo um nó na garganta.
O caminho até Lisboa foi feito em silêncio. O rádio do carro tocava uma música qualquer da Ana Moura, mas eu não ouvia nada. Só pensava nas palavras que nunca dissemos um ao outro: desculpa, obrigado, tenho saudades tuas.
Quando cheguei ao hospital, o cheiro a desinfetante misturava-se com o cheiro da chuva molhada nos corredores frios. O Rui estava sentado numa cadeira de rodas, com um saco de plástico ao colo. Parecia mais velho do que os seus 34 anos. Os olhos fundos, a barba por fazer, as mãos trémulas.
— Vieste mesmo — disse ele, com um sorriso triste.
— Vim — respondi, sem saber o que mais dizer.
O enfermeiro entregou-me uma folha com instruções e um saco com os medicamentos dele. — Tem de tomar isto todos os dias. E evitar o álcool — disse, olhando para mim como se eu pudesse garantir alguma coisa.
No carro, o Rui ficou em silêncio durante quase todo o caminho. Só quando passámos pela ponte 25 de Abril é que falou:
— Achas que a mãe ainda gosta de mim?
A pergunta apanhou-me desprevenido. — Claro que gosta. És filho dela.
Ele riu-se, um riso amargo. — Às vezes acho que ninguém gosta de mim. Nem eu próprio.
Quis dizer-lhe que estava errado, que ainda havia esperança, mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, liguei o rádio outra vez. Desta vez tocava uma música do António Zambujo. O Rui encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos.
Quando chegámos a casa da mãe, ela estava à porta à nossa espera. Abraçou-o com força, como se quisesse colar todos os pedaços partidos dele. Eu fiquei parado atrás, sem saber se devia entrar ou ir embora.
O jantar foi silencioso. O pai não apareceu — disse que tinha uma reunião importante, mas todos sabíamos que era mentira. A mãe serviu sopa e arroz de pato, mas ninguém tinha apetite. O Rui mexia na comida com o garfo, sem comer.
— Precisas de ajuda? — perguntei-lhe baixinho, quando fomos fumar um cigarro à varanda.
Ele olhou para mim com olhos cansados. — Preciso de tempo. E de alguém que não desista de mim.
Ficámos ali em silêncio, a ver as luzes da cidade ao longe. Lembrei-me de quando éramos miúdos e brincávamos juntos no jardim do bairro. O Rui era sempre o mais destemido, o primeiro a subir às árvores ou a saltar para a piscina gelada em maio. Eu seguia-o para todo o lado, convencido de que nada nos podia separar.
Mas a vida separou-nos. As escolhas dele, as minhas omissões, os silêncios da família. Tudo se foi acumulando até já não sabermos como voltar atrás.
Naquela noite, antes de ir embora, a mãe chamou-me à cozinha.
— Obrigada por teres ido buscar o teu irmão — disse ela, com a voz embargada.
— Não fiz mais do que a minha obrigação.
Ela abanou a cabeça. — Fizeste mais do que isso. Fizeste o que ninguém mais quis fazer.
No caminho para casa, senti-me vazio e cheio ao mesmo tempo. Vazio porque sabia que nada ia ser fácil daqui para a frente. Cheio porque, pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez ainda houvesse esperança para nós.
Os dias seguintes foram difíceis. O Rui tentava manter-se sóbrio, mas as tentações eram muitas. A mãe ligava-me todos os dias a pedir ajuda — para ir com ele ao médico, para lhe comprar medicamentos, para o ouvir quando ele tinha crises de ansiedade.
O pai continuava ausente. Dizia que não aguentava ver o filho naquele estado, mas eu sabia que era medo. Medo de enfrentar os próprios erros, medo de admitir que falhou como pai.
Uma noite, o Rui desapareceu. A mãe ligou-me em pânico às três da manhã.
— Ele não está em casa! Já liguei para os amigos todos e ninguém sabe dele!
Corri as ruas de Setúbal à procura dele. Fui ao jardim onde costumávamos brincar em pequenos, ao café onde ele costumava ir com os amigos, até ao cais junto ao rio Sado. Finalmente encontrei-o sentado num banco, com uma garrafa vazia ao lado.
— O que estás aqui a fazer? — perguntei, ofegante.
Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos. — Não consigo. Não consigo ser aquilo que vocês querem que eu seja.
Sentei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Depois abracei-o, como nunca tinha feito antes.
— Não tens de ser nada para ninguém. Só tens de tentar ser melhor para ti próprio.
Ele chorou nos meus braços como uma criança perdida. E eu percebi que, apesar de tudo, ainda éramos irmãos.
Hoje, passados meses desse dia, o Rui continua a lutar. Tem recaídas, mas também tem dias bons. A mãe nunca desistiu dele. O pai continua distante, mas às vezes liga para saber como está.
Eu aprendi que perdoar não é esquecer — é escolher não deixar que o passado dite o futuro. E às vezes pergunto-me: quantas famílias há em Portugal presas neste ciclo de dor e silêncio? Quantos irmãos se perdem uns dos outros por medo de enfrentar as próprias feridas?
Será que algum dia vamos conseguir ser uma família inteira outra vez? E vocês, já tiveram de escolher entre perdoar e seguir em frente ou deixar alguém para trás?