Levaram-me a neta – Fui eu que falhei como avó?

— Dona Amélia, não posso aceitar isto! — gritou o meu genro, Rui, com a voz a tremer de raiva, enquanto segurava a mão da minha neta, a pequena Matilde, que olhava para mim com olhos assustados. — Não posso deixar a Matilde aqui se nem um pacote de bolachas lhe compra!

Senti o coração a apertar-se no peito. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma das laranjeiras do quintal, mas naquele momento tudo me parecia distante, como se estivesse a ver a minha própria vida através de um vidro embaciado.

— Rui, por amor de Deus, não é preciso fazeres este drama todo — tentei responder, a voz a falhar-me. — Dei-lhe pão com marmelada, fruta, até fiz um arroz doce ontem! Não é por não lhe dar doces todos os dias que a menina está maltratada…

Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. — A Matilde disse-me que pediu um chocolate e a senhora disse que não havia dinheiro para isso. Como é possível? Não lhe dou dinheiro suficiente?

A Matilde, de seis anos, escondia-se atrás das pernas do pai, os olhos grandes e húmidos. Senti uma dor aguda no peito. Era verdade, tinha-lhe dito que não podia comprar chocolate naquele dia. A reforma mal dava para as contas, e eu sempre aprendi a não esbanjar. Mas será que estava a ser demasiado dura?

— Rui, sabes que a vida aqui não é fácil. A reforma mal chega para tudo, e eu tento dar-lhe o melhor que posso. Não quero que ela cresça a pensar que tudo se compra, que basta pedir para ter…

Ele interrompeu-me, impaciente. — Isso são ideias antigas, Dona Amélia. Hoje em dia as crianças precisam de sentir-se amadas, de ter pequenos prazeres. Não é só pão e fruta! — E, sem mais uma palavra, pegou na Matilde ao colo e saiu porta fora, deixando-me sozinha na cozinha, com as mãos a tremer e o coração despedaçado.

Fiquei ali, parada, a ouvir o som do portão a fechar-se, como se fosse o fecho de uma prisão. Sentei-me à mesa, olhei para a chávena de café já fria e senti as lágrimas a correrem-me pela cara. Lembrei-me dos meus próprios filhos, de como os criei com tanto sacrifício, muitas vezes sem nada para lhes dar além de sopa e carinho. Nunca lhes faltou amor, mas será que lhes faltou mais alguma coisa?

A minha filha, Sofia, mãe da Matilde, ligou-me nessa noite. A voz dela estava fria, distante.

— Mãe, o Rui está muito zangado. Diz que não cuidas bem da Matilde. Que ela veio para casa a chorar porque queria um chocolate e tu não lhe deste.

— Sofia, sabes que faço tudo por ela. Mas não posso dar-lhe tudo o que pede. Não é assim que se educa uma criança…

— Mãe, os tempos mudaram. Não podes ser tão rígida. A Matilde sente-se rejeitada quando lhe negas essas coisas. — A voz dela quebrou-se um pouco. — Eu sei que fazes o teu melhor, mas tens de perceber que ela é uma criança.

Fiquei sem palavras. Senti-me velha, ultrapassada, como se o mundo tivesse avançado e eu tivesse ficado para trás. Passei a noite em claro, a pensar em tudo o que fizera de errado. Será que era mesmo uma avó má? Ou será que os valores que me ensinaram já não serviam para nada?

No dia seguinte, a casa parecia vazia sem a Matilde. O silêncio era ensurdecedor. Fui ao quarto dela, ainda com o cheiro do seu champô de morango, e sentei-me na cama. Peguei no boneco de trapos que lhe fizera no Natal passado. As lágrimas voltaram, teimosas.

Lembrei-me de quando era pequena, de como a minha mãe me ensinou a fazer pão, a costurar, a cuidar da horta. Nunca tive chocolates nem brinquedos caros, mas nunca me faltou amor. Será que isso já não conta?

Os dias passaram devagar. Sofia não me ligava. O Rui também não. Senti-me cada vez mais isolada, como se tivesse sido posta de lado pela minha própria família. As vizinhas perguntavam pela Matilde e eu respondia com um sorriso amarelo, a inventar desculpas.

Uma tarde, ouvi bater à porta. Era a minha vizinha, Dona Teresa.

— Amélia, ouvi dizer que a Matilde já não vem cá. O que se passa?

Desabafei com ela, contei-lhe tudo. Ela ouviu-me em silêncio, depois pousou a mão no meu ombro.

— Não te culpes tanto. Os tempos mudam, sim, mas o amor de avó nunca sai de moda. Talvez eles precisem de tempo para perceber isso.

As palavras dela deram-me algum conforto, mas a dor continuava. Senti-me perdida, sem saber o que fazer. Devia pedir desculpa? Devia insistir nos meus valores?

Uma semana depois, Sofia apareceu à porta. Trazia a Matilde pela mão. A menina correu para mim, abraçou-me com força.

— Avó, tive saudades tuas! — disse ela, com a vozinha doce.

Sofia olhou-me nos olhos, emocionada.

— Mãe, desculpa. O Rui exagerou. Eu também. Sabemos que fazes tudo por ela. Só queremos que ela seja feliz.

Abracei-as às duas, as lágrimas a correrem-me pela cara. Senti um alívio imenso, mas também uma tristeza profunda por tudo o que se tinha passado.

— Sofia, eu só quero o melhor para ela. Mas não posso dar-lhe tudo o que pede. Não tenho como. E não acho que isso seja o mais importante…

Sofia sorriu, compreensiva.

— Eu sei, mãe. Vamos tentar encontrar um equilíbrio. A Matilde precisa de ti. E nós também.

Naquela noite, depois de adormecer a Matilde, fiquei sentada à janela, a olhar para o céu estrelado. O silêncio da aldeia envolvia-me como um manto. Pensei em tudo o que tinha acontecido, nas palavras duras, nas lágrimas, nos abraços.

Será que o amor de avó é suficiente para enfrentar as exigências do mundo moderno? Ou será que, no fundo, todos precisamos apenas de sentir que pertencemos a alguém?

E vocês, o que fariam no meu lugar? O que é mais importante: dar tudo o que uma criança pede, ou ensinar-lhe o valor das pequenas coisas?