Quando o Miguel Abraçou a Leonor: Bondade Sem Fronteiras
— Não chores, por favor… — sussurrei, sem saber bem o que dizer, enquanto me sentava ao lado da Leonor naquele banco frio do recreio. O meu coração batia tão rápido que quase não conseguia ouvir o que ela murmurava entre soluços. Era o meu primeiro dia na Escola Secundária de Alvalade, e já sentia o peso de ser o estranho, o novo, aquele que ninguém conhece nem quer conhecer. Mas, ao ver aquela rapariga de cabelo castanho-escuro e olhos marejados, percebi que talvez não fosse o único a sentir-me assim.
— Eles… eles esconderam-me o estojo outra vez — disse ela, tentando limpar as lágrimas com as mangas do casaco. — E disseram que ninguém gosta de mim aqui.
Fiquei em silêncio por um momento, sem saber se devia abraçá-la ou apenas ficar ali. Ouvia ao longe os risos dos outros miúdos, os gritos dos rapazes do 9º ano a jogar futebol, e sentia-me ainda mais pequeno. Mas naquele instante, algo dentro de mim mudou.
— Eu gosto de ti — respondi, sem pensar. Ela olhou para mim, surpresa. — Quer dizer… não te conheço bem, mas… posso gostar. Podemos ser amigos?
Leonor sorriu pela primeira vez naquele dia. Foi um sorriso tímido, quase impercetível, mas suficiente para me dar coragem. Ficámos ali sentados durante o intervalo inteiro, a falar sobre coisas simples — os nossos cães, os filmes que gostávamos de ver ao domingo à tarde, as saudades que ela tinha do pai que trabalhava em França.
Quando o sinal tocou para voltarmos às aulas, senti que algo tinha mudado. Não era só ela que precisava de um amigo; eu também precisava dela. E naquele momento, sem percebermos, começámos a construir uma ponte entre dois mundos solitários.
Os dias seguintes foram tudo menos fáceis. A escola era um campo de batalha disfarçado de corredores coloridos e quadros brancos. Os mesmos rapazes que gozavam com a Leonor começaram a implicar comigo também.
— Olha o novo amigo da chorona! — gritavam eles no recreio. — Vão casar-se e ter filhos feios!
A vergonha queimava-me as faces, mas eu recusava afastar-me dela. Em casa, tentei contar à minha mãe o que se passava.
— Miguel, tens de ser forte — disse ela, enquanto preparava o jantar na nossa pequena cozinha em Chelas. — As pessoas só gozam com quem é diferente porque têm medo de serem diferentes também.
Mas eu não queria ser diferente. Queria apenas pertencer a algum lado. Queria sentir-me seguro quando entrava na escola e não ter medo dos risos ou dos olhares.
Uma tarde, depois das aulas, encontrei a Leonor à porta da escola com um olho negro.
— O que aconteceu? — perguntei, assustado.
Ela hesitou antes de responder:
— O Diogo e o Rui apanharam-me sozinha no corredor… disseram que eu era uma vergonha para a escola.
Senti uma raiva crescer dentro de mim como nunca antes. Quis ir atrás deles, gritar-lhes, fazer justiça com as próprias mãos. Mas Leonor agarrou-me pelo braço.
— Não vale a pena — murmurou. — Eles são mais fortes…
Naquela noite não consegui dormir. Ouvia as vozes deles na minha cabeça, misturadas com as palavras da minha mãe e os soluços da Leonor. Perguntei-me se algum adulto sabia realmente o que se passava naquela escola. Se alguém se importava.
No dia seguinte, tomei uma decisão. Durante a aula de Português, levantei a mão e pedi para falar com a professora Sofia no final da aula.
— Professora… eu preciso de lhe contar uma coisa — disse-lhe baixinho, enquanto os outros alunos saíam da sala.
Ela olhou para mim com atenção verdadeira.
— O que se passa, Miguel?
Contei-lhe tudo: os insultos, as ameaças, o estojo escondido, o olho negro da Leonor. Ela ouviu-me em silêncio e depois agradeceu-me por ter tido coragem de falar.
No dia seguinte, houve uma reunião com os pais dos rapazes envolvidos e a direção da escola. O ambiente estava tenso; os pais do Diogo gritavam que era tudo mentira, que o filho era um santo. A mãe da Leonor chorava baixinho no fundo da sala. Eu estava lá com a minha mãe, que me apertava a mão com força.
A escola decidiu suspender os agressores por uma semana e organizar sessões sobre bullying para todas as turmas. Mas nada disto apagou o medo que sentíamos todos os dias ao entrar nos portões.
Com o tempo, outros alunos começaram a aproximar-se de mim e da Leonor. Primeiro foi a Catarina, depois o João e até mesmo a Inês do 8ºB. Aos poucos formámos um grupo improvável: os diferentes, os tímidos, os que nunca tinham tido coragem de se juntar a ninguém.
Começámos a almoçar juntos no refeitório e a estudar na biblioteca depois das aulas. Partilhávamos segredos e sonhos: a Catarina queria ser médica; o João queria fugir para Londres; eu sonhava em ser escritor; a Leonor queria apenas ser feliz.
Em casa, as coisas também estavam longe de ser perfeitas. O meu pai tinha perdido o emprego há meses e passava os dias fechado no quarto a ver televisão ou a discutir com a minha mãe sobre contas por pagar. Muitas vezes jantávamos em silêncio, cada um perdido nos seus próprios problemas.
Uma noite ouvi-os discutir mais alto do que nunca:
— Não aguento mais esta vida! — gritava o meu pai.
— E achas que eu aguento? Achas que é fácil para mim? — respondia ela.
Fugi para o meu quarto e liguei à Leonor. Ficámos horas ao telefone sem dizer quase nada; só ouvir a respiração dela do outro lado já me acalmava.
No final do ano letivo organizaram uma festa na escola. Pela primeira vez desde que ali entrei senti-me parte de alguma coisa maior do que eu próprio. Dançámos todos juntos no ginásio decorado com balões azuis e brancos; rimos até nos doerem as barrigas; tirámos fotografias para nunca esquecer aquele momento.
No caminho para casa nessa noite perguntei à Leonor:
— Achas que algum dia vamos deixar de ter medo?
Ela sorriu e respondeu:
— Talvez nunca deixemos de ter medo… mas agora temos uns aos outros.
Hoje olho para trás e percebo como aquele abraço no banco do recreio mudou tudo. Não só para mim ou para ela, mas para todos nós que aprendemos a importância da bondade num mundo tantas vezes cruel.
Será que basta um gesto simples para mudar uma vida? Ou precisamos todos de coragem para dar o primeiro passo? Gostava de saber o que vocês pensam…