Silêncio em Mim: Como Sobrevivi ao Cancro e à Traição da Minha Família
— Catarina, não podes continuar a viver assim! — gritou a minha mãe, com a voz embargada, enquanto eu, sentada à mesa da cozinha, olhava para as minhas mãos trémulas. O cheiro do café queimado pairava no ar, misturando-se com a tensão que se instalara entre nós há semanas.
— Não percebes, mãe? Eu não escolhi isto! — respondi, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. O diagnóstico de cancro de mama tinha chegado há apenas dois meses, mas parecia que já tinham passado anos desde que a minha vida era normal. O silêncio do meu pai, sentado no canto da sala, era ensurdecedor. Ele não me olhava nos olhos. Nunca mais o fez desde aquele dia no hospital.
A minha irmã, Inês, entrou na cozinha, atirando o telemóvel para cima da mesa. — Não posso faltar outra vez ao trabalho por tua causa, Catarina. O chefe já me avisou. — O tom dela era frio, distante, como se eu fosse um fardo. Senti o chão a fugir-me dos pés. Não era só o medo da doença, era o medo de perder tudo o que conhecia, tudo o que amava.
Lembro-me de quando éramos pequenas e partilhávamos o mesmo quarto. Inês era a minha melhor amiga, a minha confidente. Agora, mal me dirigia a palavra. O cancro não me estava só a roubar o corpo, estava a roubar-me a família.
As semanas seguintes foram um desfile de consultas, exames e tratamentos. O hospital de Santa Maria tornou-se a minha segunda casa. Os corredores frios, o cheiro a desinfetante, os olhares cansados de outros doentes. No início, a minha mãe ia comigo, mas depressa começou a arranjar desculpas: “Tenho de ir às compras”, “O teu pai precisa de mim”. Inês desapareceu quase por completo. O meu pai limitava-se a pagar as contas, sem nunca perguntar como me sentia.
Foi numa dessas manhãs geladas de janeiro que conheci o Sr. Manuel, um senhor de setenta anos, também ele a lutar contra o cancro. Sentou-se ao meu lado na sala de espera e, sem me olhar, disse:
— Sabes, menina, o pior não é a doença. É a solidão. — As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Era verdade. O que mais me doía não era o medo da morte, era o abandono.
Comecei a fechar-me em mim mesma. Passava horas a olhar pela janela do meu quarto, a ver a chuva a cair sobre Lisboa. Oiço ainda o som dos carros na rua, as vozes distantes dos vizinhos. O mundo continuava a girar, indiferente à minha dor. Perguntava-me vezes sem conta: “O que fiz eu para merecer isto?”
Uma noite, depois de mais uma sessão de quimioterapia, cheguei a casa e encontrei a minha mãe à porta do meu quarto, com uma mala na mão.
— Catarina, vais ter de ir para casa da tia Rosa. Aqui já não dá. Estamos todos a ficar doentes com isto. — As palavras dela cortaram-me como facas. Senti-me rejeitada, indesejada. A minha própria mãe a expulsar-me de casa, como se eu fosse um peso morto.
A tia Rosa vivia em Almada, num pequeno apartamento cheio de gatos. Recebeu-me com um sorriso triste, mas não era a mesma coisa. Senti-me uma estranha, uma intrusa. As noites eram longas e frias. Chorava baixinho, para ninguém ouvir. Escrevia cartas à minha mãe e à Inês, mas nunca tive coragem de as enviar.
Os dias passaram-se entre tratamentos e solidão. O cabelo começou a cair. Olhava-me ao espelho e não me reconhecia. Onde estava a Catarina de antes? A rapariga cheia de sonhos, que queria ser professora, viajar pelo mundo, apaixonar-se? Agora era só um corpo magro, cansado, com olhos vazios.
Um dia, a tia Rosa entrou no meu quarto com um envelope na mão.
— Chegou isto para ti. — Era uma carta da minha mãe. As mãos tremiam-me ao abrir o envelope.
“Catarina,
Desculpa. Não sei lidar com isto. Tenho medo. Sinto-me a falhar como mãe. Espero que um dia me perdoes.
Mãe.”
Li e reli aquelas palavras vezes sem conta. Senti raiva, tristeza, mas também uma estranha compaixão. Percebi que o medo não era só meu. O cancro tinha destruído não só o meu corpo, mas também a minha família. Cada um de nós estava a lutar à sua maneira, mesmo que isso significasse fugir.
Foi nessa altura que decidi que não podia continuar à espera que os outros me salvassem. Comecei a sair de casa, a caminhar pelo bairro, a falar com os vizinhos. Conheci a Dona Amélia, que me oferecia chá de limão e ouvia as minhas histórias. Fui à biblioteca, li livros sobre mulheres que tinham sobrevivido a tudo e mais alguma coisa. Escrevi um diário, onde despejava toda a minha dor, mas também as pequenas vitórias: um dia sem vómitos, um telefonema de um amigo antigo, um sorriso ao espelho.
Aos poucos, fui recuperando pedaços de mim. O cabelo começou a crescer, fraco e ralo, mas era meu. Voltei a sonhar, a fazer planos. Inscrevi-me num curso online de literatura portuguesa. Pela primeira vez em meses, senti esperança.
Um ano depois do diagnóstico, recebi a notícia: remissão. O cancro tinha recuado. Chorei sozinha no quarto, mas desta vez de alívio. Liguei à minha mãe, mas ela não atendeu. Liguei à Inês, que me respondeu com uma mensagem seca: “Parabéns”.
A dor do abandono ainda estava lá, mas já não me definia. Aprendi a viver com as cicatrizes, físicas e emocionais. A tia Rosa tornou-se a minha família. Celebrámos juntas cada pequena conquista. No Natal, fiz questão de enviar um postal à minha mãe e à Inês. Não obtive resposta, mas não faz mal. Aprendi que o perdão é mais para nós do que para os outros.
Hoje, sento-me à janela do meu pequeno apartamento em Lisboa e vejo a cidade a acordar. Oiço o som dos elétricos, o cheiro do pão quente a subir da rua. Sinto-me em paz. Sei que sou mais forte do que alguma vez imaginei. O silêncio já não me assusta. É nele que encontro a minha força.
Pergunto-me muitas vezes: quantas pessoas vivem presas ao medo e à solidão, sem saber que têm dentro de si uma coragem imensa? E tu, já encontraste a tua força no silêncio?