Tive razão em expulsar a minha sogra de casa depois do que ela fez na nossa ausência?
— Não acredito no que estás a dizer, mãe! — gritou o Rui, a voz dele tremendo entre a raiva e a incredulidade. Eu estava parada no corredor, com as mãos a tremer, sentindo o coração bater tão forte que quase me sufocava. A minha sogra, Dona Lurdes, olhava para mim com aquele ar altivo, como se nada do que tivesse feito fosse grave. Mas eu sabia. Eu vi tudo. E naquele momento, o nosso lar — o lar pelo qual tanto lutámos — desmoronava-se à minha frente.
Tudo começou numa sexta-feira de chuva miudinha. O Rui e eu tínhamos finalmente comprado a nossa casa em Almada, depois de anos a viver num T2 apertado com paredes finas e vizinhos barulhentos. Era o nosso sonho: um pequeno jardim, uma cozinha luminosa, espaço para os nossos filhos — quando eles viessem. A minha mãe dizia sempre que as casas guardam as energias de quem lá vive. Eu queria acreditar que ali só haveria felicidade.
Naquela manhã, o Rui saiu cedo para o trabalho e eu fui visitar a minha irmã, a Marta, que tinha acabado de ter bebé. Deixei a chave debaixo do vaso da entrada — um hábito antigo, para o caso de algum imprevisto. Nunca pensei que esse pequeno gesto pudesse mudar tudo.
Por volta das três da tarde, recebi uma chamada da vizinha do lado, Dona Emília:
— Filipa, desculpa incomodar-te, mas vi a tua sogra entrar em tua casa há bocado. Está tudo bem?
O meu estômago deu um nó. Dona Lurdes nunca aparecia sem avisar. Liguei-lhe de imediato, mas ela não atendeu. Tentei não pensar no pior. Talvez tivesse vindo buscar alguma coisa do Rui, ou deixar um bolo — ela gostava de fazer-se útil, mesmo quando ninguém pedia.
Quando cheguei a casa, senti logo o cheiro forte de lixívia. O chão brilhava mais do que nunca e havia um silêncio estranho, pesado. Subi as escadas devagar e foi então que vi: as minhas fotografias de infância estavam todas fora dos álbuns, espalhadas pela cama. As cartas do Rui — aquelas que ele me escreveu quando ainda namorávamos — estavam rasgadas no lixo.
Desci as escadas a correr e encontrei Dona Lurdes na cozinha, a limpar os armários.
— O que é que está a fazer? — perguntei, tentando controlar a voz.
Ela virou-se para mim com um sorriso frio:
— Só estou a pôr ordem nesta confusão. Estas recordações não servem para nada. O Rui já é homem feito, não precisa destas infantilidades.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Não tinha o direito! Isto é a nossa casa!
— A casa é do meu filho — respondeu ela, com aquela calma venenosa. — E eu só quero o melhor para ele.
Nesse momento, percebi que ela nunca me aceitou verdadeiramente. Sempre fui “a rapariga da margem sul”, nunca suficientemente boa para o filho dela. Aguentei anos de comentários passivo-agressivos nos jantares de família: “A Filipa não sabe fazer arroz de pato como eu”, “O Rui sempre gostou mais das minhas almôndegas”.
Mas aquilo era diferente. Ela tinha invadido o nosso espaço, destruído memórias que eram só nossas.
Quando o Rui chegou a casa e viu o estado em que eu estava, tentei explicar-lhe tudo entre soluços. Ele ficou branco como a cal.
— Mãe, como é que foste capaz?
Dona Lurdes encolheu os ombros:
— Fiz o que tinha de ser feito. Esta casa precisava de uma limpeza a sério.
O Rui olhou para mim, depois para ela. Vi nos olhos dele a luta interna: entre o amor filial e o respeito pelo nosso casamento.
— Mãe, tens de sair. Agora.
Ela ficou imóvel durante uns segundos, como se não acreditasse no que ouvia.
— Vais escolher esta mulher em vez da tua mãe?
O Rui não respondeu. Limitou-se a abrir a porta e esperar que ela saísse.
Quando finalmente ficámos sozinhos, sentei-me no chão da sala e chorei como há muito não chorava. O Rui tentou abraçar-me, mas eu afastei-o. Senti-me traída não só pela sogra, mas também por ele — por nunca ter posto limites antes.
Nos dias seguintes, a família dividiu-se. A irmã do Rui ligou-me aos gritos:
— Como é que tiveste coragem de expulsar a nossa mãe? Ela só queria ajudar!
A minha mãe tentou consolar-me:
— Filha, há pessoas que nunca vão mudar. Tens de proteger o teu espaço.
O Rui fechou-se em si mesmo. Passava horas calado, evitava olhar-me nos olhos. Comecei a duvidar de tudo: do nosso casamento, da nossa capacidade de sermos felizes ali.
Uma noite, depois de mais uma discussão silenciosa à mesa do jantar, explodi:
— Achas mesmo que isto é normal? Que a tua mãe pode entrar aqui quando lhe apetece e destruir tudo?
Ele olhou para mim com tristeza:
— Não sei o que pensar, Filipa. Sinto-me dividido.
— Pois eu não! Esta casa é nossa! Se não consegues perceber isso…
As palavras ficaram suspensas no ar. Senti-me sozinha como nunca antes.
Os dias passaram lentos e pesados. Comecei a evitar estar em casa; arranjava desculpas para sair mais cedo para o trabalho ou ficar mais tempo com a Marta e o bebé. O Rui tentava compensar: trazia flores, fazia jantar, mas havia sempre um silêncio entre nós — uma ferida aberta que não sarava.
Uma tarde, encontrei Dona Lurdes à porta da escola onde dou aulas. Esperava-me com um saco na mão.
— Vim devolver-te isto — disse ela secamente. No saco estavam algumas das minhas fotografias salvas do lixo.
Olhei-a nos olhos:
— Porque é que fez aquilo?
Ela hesitou por um segundo antes de responder:
— Porque tenho medo de perder o meu filho. Sempre fomos só nós os dois… E agora sinto-me sozinha.
Pela primeira vez vi fragilidade naquela mulher dura. Mas não consegui perdoar-lhe naquele momento.
Voltei para casa ainda mais confusa. O Rui estava à minha espera na sala.
— A minha mãe ligou-me — disse ele baixinho. — Disse-me que está arrependida…
Sentei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio durante muito tempo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria sido mais compreensiva? Ou era mesmo preciso pôr limites para proteger aquilo que construímos juntos?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde deve ir o perdão numa família?