O Último Pão – O Silêncio de uma Mãe Portuguesa
— Mãe, hoje há sopa? — perguntou o Tiago, com os olhos grandes e castanhos fixos em mim, enquanto eu fingia procurar algo no fundo do armário vazio.
O silêncio pesou na cozinha fria do nosso T2 em Almada. O relógio marcava oito da noite, e o cheiro do pão velho era tudo o que restava. Tentei sorrir, mas a minha voz saiu embargada:
— Hoje… hoje vamos comer pão com manteiga, filhos. Amanhã a mãe faz uma sopa boa, prometo.
A Carolina, a mais velha, percebeu logo. Aos 13 anos já tinha aprendido a ler as rugas novas no meu rosto, a notar quando o frigorífico só tinha água e um resto de margarina. O Miguel, com seis anos, ainda acreditava nas promessas mágicas das mães.
Sentei-me à mesa com eles, repartindo as duas últimas fatias de pão entre três pratos. Fingi não ter fome. O estômago roncava, mas o coração doía mais. Olhei para as mãos — tão gastas de limpar casas alheias, tão vazias para os meus.
— Mãe, amanhã posso levar um iogurte para a escola? — perguntou o Miguel.
— Claro, meu amor — menti. Não havia iogurtes há semanas. Nem fruta. Nem leite. Só dívidas e contas por pagar.
O telefone tocou. Era a minha mãe, lá em Évora. Não atendi. Não queria ouvir o discurso de sempre: “Maria, tu escolheste esse homem…” ou “Devias ter ficado cá na terra”. O António, meu marido, estava no café desde as seis. Disse que ia tentar arranjar trabalho com um amigo, mas eu sabia que era mentira. O cheiro a cerveja quando chegava tarde não enganava ninguém.
A Carolina levantou-se sem comer metade do pão.
— Não tens fome? — perguntei.
— Não muita — respondeu ela, baixando os olhos.
Vi-lhe as lágrimas a brilhar. Senti-me tão pequena. Tão inútil. Como é que uma mãe deixa os filhos ir para a cama com fome?
Depois de os deitar, sentei-me no sofá rasgado e chorei em silêncio. Lembrei-me dos tempos em que sonhava ser professora, antes de engravidar aos 19 anos. Lembrei-me do António antes da bebida e das promessas quebradas. Lembrei-me da minha mãe a dizer: “A vida é dura para quem é mole”.
Oiço a porta a bater forte. O António entra aos tropeções.
— Não fizeste jantar? — grita ele da cozinha.
— Não havia nada — respondo baixo.
Ele atira o casaco para cima da mesa.
— Sempre a mesma coisa! Para isto mais valia ter ficado solteiro!
A raiva sobe-me à garganta, mas engulo-a como engulo a vergonha todos os dias.
— Se arranjasses trabalho… — começo eu.
Ele interrompe-me com um olhar frio:
— Não me venhas com sermões! Amanhã trato disso.
Amanhã… sempre amanhã. Mas amanhã nunca chega nesta casa.
Deito-me ao lado dele sem trocar palavra. Oiço-lhe a respiração pesada e penso nos meus filhos a dormir com fome. Penso se falhei como mãe ou se o mundo é que falhou connosco.
No dia seguinte acordo cedo para ir limpar escadas num prédio ali perto. O corpo dói-me todo, mas não posso parar. Cada euro conta. No regresso passo pelo supermercado e conto as moedas: compro um pacote de arroz e um litro de leite. Sinto-me uma heroína por conseguir trazer isso para casa.
Quando chego, encontro a Carolina sentada à mesa com um caderno aberto.
— Preciso de dois euros para uma visita de estudo — diz ela sem me olhar nos olhos.
O coração aperta-se-me no peito.
— Vou arranjar — prometo outra vez.
À noite, depois de todos dormirem, olho para eles e pergunto-me: quantas mães portuguesas vivem este silêncio? Quantas choram baixinho para não acordar os filhos? Será que algum dia vou conseguir dar-lhes mais do que promessas?
E vocês? Já sentiram este peso no peito? O que fariam no meu lugar?