A minha pequena Leonor de vestido de marca: Serei eu realmente uma má mãe?
— Não achas que já chega, Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio como uma faca afiada. — Uma criança de três anos com um vestido desses? E ainda por cima, Leonor? Não havia nomes mais nossos?
Fiquei parada, com as mãos ainda húmidas da loiça, a olhar para o chão de azulejo gasto. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma do pão quente, mas nada conseguia abafar o peso daquela pergunta. Senti o olhar da minha mãe, duro, como se esperasse que eu cedesse, que pedisse desculpa por querer dar à minha filha aquilo que nunca tive.
— Mãe, é só um vestido — tentei justificar, mas a minha voz saiu mais fraca do que queria. — E o nome… sempre gostei de Leonor. É bonito, é diferente.
Ela bufou, abanando a cabeça. — Bonito? Diferente? Mariana, aqui não somos dessas modernices. Vais ver, ainda te vais arrepender. O povo fala, sabes como é.
O povo fala. Sempre falou. Desde que engravidei sem casar, desde que decidi ficar na aldeia em vez de ir para Lisboa com o pai da Leonor, desde que comecei a trabalhar no café da Dona Rosa para sustentar a minha filha. Mas nunca pensei que um vestido — um simples vestido de marca, comprado em saldos, diga-se — e um nome pudessem causar tanto rebuliço.
Naquela tarde, levei Leonor ao parque. O vestido cor-de-rosa, com o logótipo discreto mas inconfundível, fazia-a parecer uma princesa. Ela corria, rindo, os caracóis castanhos a saltar-lhe nos ombros. Senti um orgulho imenso, mas também um aperto no peito quando reparei nos olhares das outras mães.
— Olha, lá vai a menina da Mariana, sempre tão arranjadinha — cochichou a Carla, a vizinha do lado, para a Andreia. — E aquele nome… parece coisa de novela.
Fingi que não ouvi, mas cada palavra era como uma pedra atirada ao meu orgulho. Sentei-me no banco, fingindo estar distraída com o telemóvel, mas não conseguia evitar ouvir os risos abafados, os comentários sussurrados. Leonor, alheia a tudo, continuava a brincar.
Quando voltámos para casa, a minha mãe esperava-nos à porta, braços cruzados.
— Mariana, a tua tia Lurdes ligou-me. Diz que a prima Matilde ouviu dizer que andas a vestir a Leonor como uma boneca rica. Que exemplo é esse para as outras crianças? — O tom dela era de censura, mas também de preocupação. — Não vês que só te estás a isolar?
Senti a raiva a crescer dentro de mim. — Mãe, eu só quero o melhor para a minha filha. Não quero que ela passe pelo que eu passei. Não quero que ela sinta vergonha de quem é.
— Mas ela é daqui, Mariana! — gritou a minha mãe. — Não é de Lisboa, nem de Paris! Aqui as coisas são diferentes. Aqui, quem se destaca, paga caro.
Fechei-me no quarto com Leonor. Ela olhou para mim, olhos grandes e inocentes.
— Mamã, estou bonita? — perguntou, rodopiando com o vestido.
Sorri, tentando esconder as lágrimas. — Estás linda, meu amor. Sempre.
Mas à noite, quando a casa ficou em silêncio, não consegui dormir. As palavras da minha mãe, os olhares das vizinhas, tudo me pesava. Será que estava a errar? Será que, ao tentar dar à Leonor tudo o que nunca tive, estava a afastá-la do mundo à nossa volta?
No dia seguinte, no café, senti os olhares. A Dona Rosa, sempre tão simpática, parecia mais fria. Até o Sr. Joaquim, que todos os dias me cumprimentava com um sorriso, desviou o olhar.
— Mariana, posso falar contigo? — perguntou a Dona Rosa, chamando-me para trás do balcão.
— Claro, Dona Rosa.
Ela hesitou, olhando para as mãos. — Sabes que gosto muito de ti. Mas há quem diga que andas a armar-te em fina. Que não é bom para o negócio. O pessoal aqui gosta de gente simples, igual a eles.
Senti o chão fugir-me dos pés. — Dona Rosa, eu só quero o melhor para a minha filha. Não quero problemas.
Ela suspirou. — Eu sei. Mas às vezes, o melhor é não chamar tanta atenção. Pensa nisso.
Saí do café com a cabeça a latejar. Senti-me sozinha, incompreendida. Em casa, Leonor brincava com as bonecas. O vestido estava pendurado na cadeira, como um símbolo de tudo o que eu queria dar-lhe e de tudo o que me separava dos outros.
À noite, a discussão com a minha mãe voltou à tona.
— Mariana, não vês que estás a criar uma barreira entre ti e o resto da aldeia? Entre a Leonor e as outras crianças? — O tom dela era quase de súplica.
— E se eu não quiser que a minha filha seja igual às outras? — rebati, já sem paciência. — E se eu quiser que ela sonhe mais alto?
— Sonhar não é pecado, filha. Mas não te esqueças de onde vens. Nem de quem somos.
As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça. Passei a noite em claro, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito até ali. Será que estava a ser egoísta? Será que estava a usar a Leonor para compensar as minhas próprias frustrações?
No domingo, fomos à missa. Leonor insistiu em levar o vestido novo. Senti os olhares, ouvi os sussurros. No final, a Dona Emília, uma das mulheres mais velhas da aldeia, aproximou-se.
— Mariana, posso dizer-te uma coisa? — perguntou, com um sorriso gentil.
Assenti, já à espera de mais uma crítica.
— A tua filha é linda. E tu és uma mãe corajosa. Mas lembra-te: às vezes, o que nos distingue também nos isola. Não deixes que o orgulho te afaste dos teus.
Aquelas palavras tocaram-me mais do que todas as críticas. Fiquei a pensar nelas durante dias. Comecei a reparar que Leonor já não era convidada para brincar com as outras crianças. Que as mães se afastavam quando eu me aproximava. Que até a minha mãe estava mais distante.
Uma noite, Leonor veio ter comigo, olhos tristes.
— Mamã, porque é que as outras meninas não querem brincar comigo?
O meu coração partiu-se. Abracei-a com força, sem saber o que dizer. Tinha-lhe dado tudo do melhor, mas talvez lhe tivesse tirado o mais importante: o sentimento de pertença.
Na semana seguinte, guardei o vestido de marca no fundo do armário. Vesti-lhe uma roupa simples e levei-a ao parque. Aos poucos, as outras crianças aproximaram-se. Ouvi risos, vi sorrisos. Senti um alívio misturado com tristeza.
À noite, sentei-me com a minha mãe à mesa da cozinha.
— Mãe, talvez tenhas razão. Talvez eu tenha exagerado. Só queria que a Leonor tivesse orgulho em si mesma.
Ela pegou-me na mão, apertando-a com ternura.
— Ela vai ter, filha. Porque tem uma mãe que a ama. Mas o orgulho também se constrói com raízes.
Agora, olho para a Leonor a dormir e pergunto-me: onde está o equilíbrio entre querer dar o mundo a um filho e ensiná-lo a pertencer ao seu lugar? Será que o amor de mãe pode ser demasiado? E vocês, o que fariam no meu lugar?