Basta! – Como Recuperei a Minha Vida ao Dizer Finalmente NÃO
— Outra vez, Mariana? Vais mesmo deixar a tua irmã ficar cá mais uma semana? — A voz do Rui, o meu marido, ecoava pela cozinha, carregada de cansaço e frustração.
Eu estava de costas para ele, a olhar para a janela embaciada pelo vapor do arroz. O cheiro do refogado misturava-se com o peso no meu peito. Não respondi logo. Sabia que ele tinha razão, mas como é que se diz não à própria irmã, ainda mais quando ela aparece à porta com as malas e os olhos vermelhos de chorar?
— Ela não tem para onde ir, Rui. O Pedro deixou-a outra vez… — murmurei, tentando justificar o injustificável.
Ele suspirou, largando a chávena na bancada com mais força do que devia. — E nós? Quando é que temos paz nesta casa?
A verdade é que a nossa casa, um T2 em Almada, tinha-se tornado um porto de abrigo para todos os naufragados da família. A minha mãe vinha passar fins de semana inteiros, a reclamar do meu pai e a pedir-me para resolver os problemas deles. O meu irmão, sempre entre empregos, dormia no sofá e esvaziava o frigorífico. Até a minha melhor amiga, a Sofia, aparecia sem avisar, trazendo o filho pequeno e a roupa para lavar.
No início, sentia-me útil. Era a irmã prestável, a filha compreensiva, a amiga de confiança. Mas, aos poucos, fui desaparecendo. A minha rotina era feita de camas improvisadas, refeições para mais bocas do que as que podia alimentar, e silêncios desconfortáveis com o Rui, que já mal me olhava nos olhos.
Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me sozinha na varanda. Oiço o barulho dos carros na ponte, o vento a bater nas persianas. Senti-me tão pequena. Perguntei-me: quando foi que deixei de ser dona da minha própria vida?
No dia seguinte, acordei com a casa cheia de vozes. A minha irmã gritava ao telefone com o Pedro, a minha mãe discutia com o meu irmão sobre quem ia ao supermercado. O Rui já tinha saído cedo, sem sequer me dar um beijo de despedida. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.
— Chega! — gritei, surpreendendo-me com a força da minha voz. Todos pararam. — Chega! Isto não é um hotel! Eu não sou empregada de ninguém!
A minha mãe olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido. — Mariana, o que é que te deu?
— O que me deu? Estou cansada! Estou farta de ser sempre eu a resolver tudo! Esta casa é minha e do Rui! Não posso continuar assim!
A minha irmã começou a chorar. O meu irmão encolheu os ombros. A minha mãe ficou calada, coisa rara. Senti-me culpada, mas também aliviada. Pela primeira vez, disse o que sentia, sem medo de magoar.
Nesse dia, pedi a todos que arranjassem alternativas. Dei uma semana à minha irmã para procurar um quarto. Disse à minha mãe que precisava de espaço para o meu casamento. Pedi ao meu irmão que procurasse trabalho e casa. Até à Sofia mandei uma mensagem: “Preciso de tempo para mim.”
O Rui chegou a casa e encontrou-me sentada na sala, a chorar. Sentou-se ao meu lado e abraçou-me. — Já devias ter feito isto há muito tempo, Mariana.
Os dias seguintes foram um misto de culpa e alívio. A casa ficou mais silenciosa, mas também mais leve. O Rui e eu começámos a conversar outra vez, a jantar juntos, a rir. Senti-me a recuperar pedaços de mim que julgava perdidos.
Claro que nem tudo foi fácil. A minha mãe deixou de me ligar durante semanas. A minha irmã mandou-me mensagens cheias de mágoa. O meu irmão disse que eu era egoísta. Até a Sofia se afastou. Mas, pela primeira vez, percebi que o meu bem-estar não podia depender da aprovação dos outros.
Comecei a fazer pequenas coisas por mim: caminhar na praia, ler um livro inteiro sem interrupções, cozinhar só para dois. Redescobri o prazer do silêncio, da rotina, da intimidade. O Rui e eu fomos passar um fim de semana ao Alentejo, coisa que não fazíamos há anos. Sentámo-nos à mesa de um restaurante, de mãos dadas, e ele disse-me: — Gosto de ti assim, Mariana. Finalmente estás a cuidar de ti.
Aos poucos, a família foi aceitando. A minha mãe arranjou um grupo de amigas para desabafar. A minha irmã encontrou um quarto e começou terapia. O meu irmão arranjou um trabalho numa pastelaria. Até a Sofia, depois de algum tempo, percebeu que também precisava de pôr limites na vida dela.
Hoje, olho para trás e vejo o quanto me anulei para agradar aos outros. Percebo que dizer não não é falta de amor — é amor-próprio. Ainda sinto culpa, às vezes. Mas aprendi que o meu espaço, o meu tempo e a minha paz são preciosos.
Pergunto-me: quantas de nós, mulheres portuguesas, crescemos a acreditar que temos de carregar o mundo às costas? E até quando vamos continuar a esquecer-nos de nós próprias para não desiludir ninguém?