Mudámos a Minha Mãe para Lisboa para Ajudar com os Miúdos: Mas Ela Tinha Outros Planos
— Mãe, podes buscar o Tomás à escola hoje? — perguntei, já com a voz embargada pelo cansaço, enquanto tentava equilibrar o telemóvel entre o ombro e a bochecha, mexendo o arroz para o jantar com a outra mão.
Do outro lado, a resposta veio rápida, mas inesperada:
— Hoje não posso, filha. Tenho aula de yoga às cinco.
Fiquei em silêncio por uns segundos, sem saber se tinha ouvido bem. Aula de yoga? A minha mãe, que sempre viveu na aldeia, que nunca teve tempo para si, agora tinha aulas de yoga? Senti uma pontada de irritação, misturada com incredulidade. Afinal, tínhamos mudado a minha mãe para Lisboa precisamente para nos ajudar com os miúdos. Era esse o acordo, não era?
Quando o meu marido, o Rui, chegou a casa, desabafei:
— A tua sogra agora tem aulas de yoga. Às quartas. Não pode buscar o Tomás. — Disse isto num tom meio sarcástico, esperando que ele ficasse do meu lado.
Mas o Rui apenas encolheu os ombros.
— Ela também tem direito à vida dela, não achas?
Fiquei furiosa. Direito à vida dela? E eu? Eu não tinha direito à minha? Desde que o Tomás nasceu, e depois a Leonor, a minha vida era um carrossel de tarefas, horários, fraldas, birras e reuniões. A minha mãe sempre foi o meu porto seguro, a mulher que nunca dizia que não, que se sacrificava por todos. E agora, de repente, tinha decidido que queria tempo para si?
Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei a pensar em tudo o que tinha mudado desde que a minha mãe viera viver connosco. No início, foi um alívio. Eu e o Rui trabalhávamos os dois, e a logística com duas crianças pequenas era impossível. A minha mãe, a Dona Lurdes, sempre tão prática, parecia a solução perfeita. Mas, aos poucos, começaram os pequenos atritos. Ela não gostava da comida que eu fazia, criticava a forma como educávamos os miúdos, e agora, para cúmulo, tinha arranjado um grupo de amigas e uma rotina própria.
Na manhã seguinte, sentei-me com ela na cozinha, enquanto o café fervia.
— Mãe, precisamos de conversar. — Disse, tentando manter a voz calma.
Ela pousou o jornal e olhou-me nos olhos, com aquela expressão serena que sempre me irritou e acalmou ao mesmo tempo.
— Diz, filha.
— Eu pensei que tinhas vindo para nos ajudar. Mas parece que agora tens mais vida social do que eu! — O tom saiu mais agressivo do que queria.
Ela sorriu, mas havia tristeza nos olhos.
— Filha, eu ajudo no que posso. Mas também preciso de me sentir viva. Passei quarenta anos a cuidar dos outros. Agora quero cuidar de mim um bocadinho.
Fiquei sem resposta. Senti-me egoísta, mas também injustiçada. Não era suposto ser assim. Não era suposto eu sentir-me sozinha com tudo outra vez.
Os dias passaram, e a tensão foi crescendo. A minha mãe começou a sair mais vezes. Yoga, caminhadas, até um curso de pintura. Eu sentia-me cada vez mais abandonada. Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me no sofá e chorei. O Rui sentou-se ao meu lado e puxou-me para o colo.
— Tens de falar com ela a sério. Não é justo para nenhuma das duas.
No fim de semana, decidi confrontá-la. Esperei que estivesse sozinha na varanda, a regar as plantas.
— Mãe, preciso mesmo de saber: vieste para nos ajudar ou para te divertires?
Ela pousou o regador e olhou-me, séria.
— Filha, eu vim porque quis ajudar. Mas não posso ser só avó. Preciso de ser mulher, preciso de ser eu. Quando o teu pai morreu, senti-me perdida. Agora, aqui, sinto-me a reencontrar.
As palavras dela bateram fundo. Lembrei-me de como ela ficou depois da morte do meu pai, fechada em casa, sem vontade de nada. Talvez eu nunca tivesse percebido o quanto ela tinha sacrificado por nós.
Nesse dia, tentei ver as coisas de outra forma. Comecei a organizar melhor os meus horários, a pedir ajuda ao Rui, a aceitar que a minha mãe tinha direito ao seu próprio espaço. Mas nem tudo foi fácil. Houve discussões, silêncios, lágrimas. A Leonor adoeceu, e a minha mãe cancelou uma saída para ficar com ela. Nesses momentos, percebi que o amor dela não tinha mudado, só tinha encontrado novas formas de existir.
Um dia, ao buscar o Tomás à escola, encontrei a professora dele, a Dona Teresa.
— O Tomás fala muito da avó. Diz que ela lhe ensina a respirar fundo quando está nervoso. — Sorriu-me, cúmplice.
Senti um nó na garganta. Talvez a minha mãe estivesse a ensinar aos meus filhos algo que eu própria precisava de aprender: a parar, a respirar, a viver.
Com o tempo, comecei a admirar a coragem dela. Inscrevi-me também numa aula de pilates, comecei a sair com amigas, a delegar mais. A nossa relação mudou. Passámos a conversar mais, a rir mais. Houve dias em que ainda me irritava com a sua independência, mas aprendi a respeitá-la.
Na última noite antes de ela ir passar uns dias à terra, sentámo-nos as duas na varanda, a ver as luzes da cidade.
— Sabes, filha, nunca é tarde para começar de novo. — Disse ela, com a voz baixa.
— Achas que algum dia vou conseguir equilibrar tudo? — perguntei, sincera.
Ela sorriu, apertou-me a mão.
— O segredo não é equilibrar tudo. É aceitar que, às vezes, as coisas caem. E está tudo bem.
Fiquei a pensar nisso muito tempo depois. Talvez a maior lição que a minha mãe me deu não tenha sido sobre cuidar dos outros, mas sobre cuidar de mim mesma. E vocês, já conseguiram aceitar que não podem controlar tudo? Como lidam com as mudanças inesperadas na vossa família?