Dei metade da minha casa ao meu filho, agora sou um estorvo?

— Mãe, precisamos de conversar. — A voz do Rui ecoou pela sala, carregada de uma tensão que me fez estremecer. Sentei-me devagar no sofá, o coração a bater mais depressa do que devia para uma mulher de 64 anos. Olhei para ele, o meu filho, o meu orgulho, e vi nos seus olhos algo que me magoou mais do que qualquer palavra poderia.

— O que se passa, filho? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo já o nó na garganta.

Ele hesitou, passou a mão pelo cabelo, um gesto que herdou do pai. — Mãe, eu e a Ana… temos sentido que precisamos de mais espaço. A casa está cada vez mais pequena para todos. E… — fez uma pausa longa, como se procurasse coragem — às vezes sentimos que… que a tua presença nos dificulta um bocado a vida.

Fiquei sem ar. Senti o chão fugir-me dos pés. Como assim, a minha presença dificulta? Não era eu que lhes fazia o jantar quando chegavam tarde? Não era eu que ficava com o pequeno Tomás quando eles precisavam de sair? Não era eu que lhes dei metade desta casa, para que pudessem começar a vida sem dívidas?

— Rui, eu… — tentei falar, mas as palavras não saíam. Lembrei-me de tudo o que fiz por ele desde que nasceu. Das noites em claro quando tinha febre, das tardes passadas no parque, das economias guardadas para lhe pagar a universidade. E agora… agora era um estorvo?

Ele desviou o olhar. — Não é isso, mãe. Só… só precisamos de espaço. A Ana sente-se desconfortável. Diz que não consegue ter privacidade.

A Ana. Sempre tão reservada comigo. Nunca me tratou mal, mas também nunca me tratou como família. Desde que casaram, senti que perdi o Rui um bocadinho. Mas sempre pensei que era normal, que os filhos crescem e seguem o seu caminho. Nunca imaginei que o meu caminho fosse acabar assim, com um pedido para sair da minha própria casa.

— Rui, eu dei-te metade desta casa para poderes construir o teu futuro. Nunca pensei que um dia me pedisses para sair dela. — A minha voz saiu trémula, quase um sussurro.

Ele suspirou. — Não te estou a pedir para saíres, mãe. Só… talvez possas passar mais tempo na casa da tia Lurdes, ou ir uns dias para o Algarve com as tuas amigas. Só para nos dar algum espaço.

Senti uma lágrima escorrer-me pela face. Lembrei-me do António, o meu marido, que partiu há dez anos. Se ele estivesse aqui, isto não acontecia. Ele sempre dizia: “A família é tudo, Maria.” E eu acreditei nisso com todas as minhas forças.

Naquela noite, fechei-me no quarto e chorei baixinho, para ninguém ouvir. O Tomás veio bater à porta.

— Avó, estás triste? — perguntou com aquela inocência desarmante das crianças.

Sorri-lhe, limpando as lágrimas. — Não, meu amor. Só estou cansada.

Ele abraçou-me com força. — Gosto muito de ti, avó.

Aquelas palavras foram o meu único consolo. Mas não consegui dormir. Passei horas a pensar onde foi que errei. Será que fui demasiado presente? Será que devia ter deixado o Rui voar mais cedo? Ou será que o erro foi meu, por acreditar que família é sinónimo de gratidão eterna?

No dia seguinte, tentei agir normalmente. Fiz o pequeno-almoço, preparei o lanche do Tomás, arrumei a cozinha. Mas sentia-me invisível. A Ana evitava cruzar-se comigo no corredor. O Rui saía cedo e chegava tarde. O silêncio da casa pesava-me nos ombros.

Uma tarde, decidi ir até à casa da minha irmã Lurdes. Ela recebeu-me com aquele abraço apertado de quem conhece as dores da vida.

— O que se passa, Maria? — perguntou ela, olhando-me nos olhos.

Contei-lhe tudo. Ela ouviu em silêncio, abanando a cabeça de vez em quando.

— Sabes, Maria, os filhos mudam. Achamos que vão ser sempre nossos meninos, mas eles crescem e esquecem-se do que fizemos por eles. Não é culpa tua. É a vida.

— Mas custa tanto, Lurdes. Dei-lhe tudo o que podia. E agora sinto-me descartada.

Ela apertou-me a mão. — Não te deixes ir abaixo. Tens de pensar em ti também. Sempre viveste para os outros. Está na hora de viveres para ti.

As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Comecei a sair mais. Fui ao café com as amigas, inscrevi-me numa aula de hidroginástica. Mas cada vez que voltava a casa, sentia-me uma intrusa.

Uma noite, ouvi uma discussão entre o Rui e a Ana.

— Não era isto que eu queria! — dizia ele. — Ela é minha mãe!

— Mas eu não aguento mais! — respondeu ela. — Não tenho liberdade nesta casa!

Senti-me culpada por ser o motivo daquela discórdia. No dia seguinte, chamei o Rui à cozinha.

— Filho, se achas melhor, eu posso ir viver com a tia Lurdes por uns tempos. Não quero ser um peso para ti.

Ele olhou-me com os olhos marejados.

— Mãe, desculpa. Eu nunca quis magoar-te. Só não sei como gerir isto. A Ana sente-se sufocada, eu sinto-me dividido. Não quero perder-te.

Abracei-o com força. — Não me vais perder, Rui. Mas talvez seja mesmo melhor dar-vos espaço. Eu vou ficar bem.

Arrumei as minhas coisas em duas malas pequenas. O Tomás chorou quando lhe disse que ia embora.

— Avó, não vás! — suplicou ele.

Abracei-o com todo o amor do mundo. — Eu volto sempre para te ver, meu querido.

Na casa da Lurdes, fui recebida de braços abertos. Mas à noite, sozinha no quarto de hóspedes, olhava para o teto e perguntava-me: como é possível uma mãe tornar-se um estorvo para o próprio filho? Será que amar demais é um erro? Será que algum dia vou deixar de sentir este vazio?

Agora passo os dias entre a casa da minha irmã e passeios pelo bairro. O Rui liga-me de vez em quando, mas as conversas são curtas. O Tomás manda desenhos pelo WhatsApp. A Ana… bom, a Ana nunca mais falou comigo.

Às vezes sento-me no banco do jardim e olho para as famílias à minha volta. Vejo mães com filhos pequenos e pergunto-me se sabem o que as espera daqui a uns anos. Se sabem que um dia podem ser elas a sentir-se a mais na vida daqueles por quem dariam tudo.

E vocês? Acham que uma mãe pode mesmo tornar-se um peso para os filhos? Ou será que é a sociedade que nos empurra para este papel de invisíveis? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…