Mãe, Meu Porto ou Meu Naufrágio? Entre o Sangue e o Perdão
— Não me peças isso, mãe. Não agora. — As palavras saíram-me num sussurro rouco, quase inaudível, mas carregadas de tudo o que guardei durante anos. Ela estava ali, à minha frente, com os olhos vermelhos e as mãos trémulas, agarrando a alça da mala como se fosse a última coisa que lhe restava no mundo.
A chuva batia forte nas vidraças do meu pequeno apartamento em Almada. O cheiro a café frio misturava-se com o aroma húmido da rua. Eu tinha acabado de chegar do trabalho — mais um turno longo no hospital — quando ouvi a campainha. Não esperava ninguém. E muito menos ela.
— Filha… — A voz dela era um eco do passado, um passado que eu tentei enterrar debaixo de camadas de silêncio e de ausência. — Eu não tenho para onde ir. O António… ele foi-se embora. Perdi tudo. Só me restas tu.
O António. O nome dele ainda me fazia estremecer. Lembro-me do dia em que a minha mãe me sentou na sala da avó Rosa, com as malas feitas, e disse:
— Vais ficar aqui uns tempos, Inês. O António precisa de espaço. Eu venho buscar-te logo que possa.
Nunca mais voltou. Fiquei com a avó Rosa, que me ensinou a fazer arroz doce e a rezar antes de dormir. Cresci a ouvir as histórias do bairro, a ver os vizinhos a discutirem na rua e a sentir o vazio que a minha mãe deixou. O vazio que tentei preencher com boas notas, com amigos, com sonhos de sair dali.
Agora ela estava ali, encolhida à minha porta, como uma criança perdida. Senti raiva. Senti pena. Senti tudo ao mesmo tempo.
— Inês, por favor… — Ela tentou tocar-me no braço, mas recuei.
— Porque é que só te lembras de mim agora? — A pergunta saiu antes que pudesse travá-la. — Onde estiveste quando precisei de ti? Quando fiz quinze anos e chorei sozinha no quarto da avó? Quando ela morreu e eu fiquei sem ninguém?
Ela baixou os olhos. Vi-lhe as rugas novas, o cabelo mais grisalho. Não era a mulher que me deixou há tantos anos. Era alguém quebrado.
— Eu errei, filha. Sei que errei. Mas não sabia como voltar atrás. O António… ele não te queria lá. E eu… eu achei que estava a fazer o melhor para ti.
Ri-me, amarga.
— O melhor para mim? Abandonar-me?
Ela chorou. As lágrimas correram-lhe pelo rosto, misturando-se com a chuva que lhe molhava o casaco velho.
— Eu tentei… tentei tantas vezes ligar-te. Mas tu nunca atendias.
— Porque não queria ouvir desculpas. — Senti o nó na garganta apertar. — Porque cada vez que via o teu número no telemóvel, lembrava-me do dia em que me deixaste.
O silêncio caiu entre nós, pesado como chumbo. Lá fora, um carro passou apressado, salpicando água para cima dos passeios.
— Posso entrar? Só por esta noite. — A voz dela era quase um sussurro.
Olhei para o corredor atrás dela. O vizinho do lado abriu a porta para espreitar, curioso. Fechei os olhos por um segundo. Lembrei-me da avó Rosa a dizer-me: “O coração não é uma porta que se fecha para sempre, menina. Às vezes precisa só de um empurrãozinho.”
Afastei-me para o lado e deixei-a entrar.
Ela pousou a mala junto à porta e ficou ali, sem saber o que fazer às mãos.
— Queres chá? — Perguntei, sem olhar para ela.
— Se não for incómodo…
Fiz-lhe chá de camomila, como a avó fazia para mim nas noites em que não conseguia dormir. Sentei-me à mesa da cozinha, olhando para as paredes despidas e para as contas por pagar empilhadas num canto.
— O que vais fazer agora? — Perguntei.
Ela encolheu os ombros.
— Não sei. Não tenho trabalho. O António ficou com tudo… até com o carro. Estou a dormir em pensões baratas há semanas.
Senti uma pontada de culpa. Por mais que quisesse odiá-la, era impossível não ver nela um reflexo meu — uma mulher sozinha, perdida num mundo que não perdoa fraquezas.
— Podes ficar aqui uns dias — disse, finalmente. — Mas não sei se consigo perdoar-te.
Ela assentiu, em silêncio. Bebeu o chá devagar, como se cada gole fosse um pedido de desculpa não dito.
Nessa noite, ouvi-a chorar no sofá da sala. Fiquei acordada na cama, a olhar para o teto, a pensar em tudo o que poderia ter sido diferente. Se ela tivesse lutado por mim. Se eu tivesse atendido as chamadas. Se o António nunca tivesse aparecido nas nossas vidas.
Os dias seguintes foram estranhos. Ela tentava ajudar em casa — lavava a loiça, arrumava as compras, fazia sopa como antigamente. Mas havia sempre um silêncio entre nós, uma distância impossível de atravessar.
Uma tarde, cheguei mais cedo do trabalho e encontrei-a a folhear um álbum antigo de fotografias.
— Lembras-te deste dia? — Perguntou-me, mostrando uma foto minha na praia da Costa da Caparica, com os cabelos cheios de areia e um sorriso desdentado.
— Lembro. Foi antes do António aparecer.
Ela suspirou.
— Eu era feliz contigo, Inês. Mas tinha tanto medo de ficar sozinha… O António parecia uma tábua de salvação. Não vi que estava a afundar-nos às duas.
Sentei-me ao lado dela. Pela primeira vez em anos, deixei-me ficar perto. Senti-lhe o cheiro familiar — um misto de lavanda e tristeza.
— Porque nunca vieste buscar-me? — Perguntei, baixinho.
Ela olhou-me nos olhos.
— Porque achei que não me ias perdoar. E porque tinha vergonha do que fiz.
Ficámos assim, em silêncio, a folhear memórias partidas.
No domingo seguinte, fomos juntas ao cemitério visitar a avó Rosa. Levei flores brancas e deixei-as junto à campa.
— Ela teria gostado de te ver aqui — disse-lhe.
A minha mãe chorou baixinho, ajoelhada na terra molhada.
Na volta para casa, ela parou na ponte e olhou para o Tejo.
— Achas que algum dia vais conseguir perdoar-me?
Olhei para ela, para as mãos envelhecidas e para os olhos cansados.
— Não sei, mãe. Mas estou disposta a tentar.
Agora escrevo estas palavras sentada à janela, vendo Lisboa acender-se ao entardecer. A minha mãe dorme no sofá, finalmente em paz por umas horas. O passado não se apaga, mas talvez se possa aprender a viver com ele.
Pergunto-me: quantos de nós carregam feridas abertas por quem mais amam? E será que o perdão é mesmo possível quando o sangue se mistura com a dor?