No Silêncio da Madrugada: Quando a Minha Mãe Adoeceu

— Mãe, por favor, não chores assim… — sussurrei, tentando não acordar o meu irmão mais novo, que dormia no quarto ao lado. Mas o soluço dela atravessava as paredes finas do nosso apartamento em Almada, misturando-se ao som distante dos carros na madrugada. Eu tinha dezassete anos e, até então, nunca tinha visto a minha mãe tão frágil.

Ela estava sentada à mesa da cozinha, a cabeça entre as mãos, o cabelo desgrenhado, o pijama velho que usava sempre que estava doente. O cheiro do chá de camomila enchia o ar, mas não conseguia acalmar o tremor das suas mãos.

— Não digas nada ao teu pai, Inês… — pediu ela, a voz embargada. — Ele já tem problemas suficientes no trabalho.

O meu pai, António, era motorista de autocarros. Ultimamente chegava a casa cada vez mais tarde, com olheiras fundas e um silêncio pesado. Eu sabia que as contas estavam atrasadas — ouvia-os a discutir baixinho à noite, quando pensavam que eu e o Tiago dormíamos.

— Mãe, tens de ir ao médico. Isto não é só cansaço… — insisti, sentindo uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que ela nunca pensava nela? Porque é que tudo tinha de ser segredo?

Ela abanou a cabeça, os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Não temos dinheiro para exames, filha. E se for grave? O que é que vai ser de vocês?

Naquele momento, senti-me mais velha do que ela. Peguei-lhe na mão e prometi que ia dar um jeito. Mas por dentro, só queria gritar.

No dia seguinte, fui à escola como um autómato. As vozes dos colegas pareciam distantes, e até a professora de Português, a minha favorita, percebeu que algo não estava bem.

— Inês, queres falar? — perguntou ela no final da aula.

Quase lhe contei tudo, mas calei-me. Tinha vergonha. Vergonha de não conseguir ajudar a minha mãe, vergonha de não ter dinheiro, vergonha de sentir inveja das colegas que só se preocupavam com festas e namorados.

À noite, o meu pai chegou mais cedo. O silêncio entre ele e a minha mãe era tão denso que quase sufocava. O Tiago, com apenas oito anos, tentava animar-nos com piadas tontas, mas ninguém ria.

— O que é que se passa aqui? — perguntou o meu pai, finalmente. — Maria, estás doente?

A minha mãe olhou para mim, como se pedisse desculpa por não conseguir esconder mais. E então desabou:

— António, eu não aguento mais. Tenho dores há semanas. Não consigo trabalhar. Tenho medo…

O meu pai ficou branco. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.

— Vamos ao hospital amanhã. Nem que eu tenha de pedir dinheiro emprestado ao meu irmão — disse ele, a voz rouca.

Nessa noite, ouvi-os a discutir baixinho outra vez. Mas desta vez não era sobre dinheiro. Era sobre medo. Sobre o que aconteceria se ela tivesse mesmo algo grave. Sobre como iríamos sobreviver.

No hospital, as horas arrastaram-se. O cheiro a desinfetante, as luzes frias, os rostos cansados dos outros doentes — tudo me parecia irreal. Quando finalmente chamaram a minha mãe para os exames, fiquei sozinha com o meu pai no corredor.

— Inês, tens de ser forte para o teu irmão — disse ele, sem me olhar nos olhos. — A tua mãe precisa de nós.

Queria perguntar-lhe quem é que cuidava de mim. Mas calei-me.

Os dias seguintes foram um pesadelo. A minha mãe foi diagnosticada com um tumor no ovário. O médico falou em cirurgia, em tratamentos longos, em incertezas. O meu pai perdeu ainda mais peso. O Tiago começou a fazer xixi na cama outra vez.

A família do meu pai ajudou como pôde, mas as discussões começaram. A minha tia Lurdes dizia que a minha mãe devia ter ido ao médico mais cedo. O meu avô acusava o meu pai de não saber gerir dinheiro. Eu sentia-me esmagada entre os gritos e os olhares de pena.

Uma noite, depois de mais uma discussão, fugi para a rua. Chovia. Sentei-me num banco de jardim e chorei até não ter mais lágrimas. Olhei para o céu escuro e perguntei a Deus porque é que isto nos estava a acontecer. Nunca fui muito religiosa, mas naquela noite rezei como nunca antes.

No dia seguinte, voltei para casa com os olhos inchados. A minha mãe estava sentada na sala, com um lenço na cabeça e um sorriso triste.

— Inês, vem cá — chamou ela. — Preciso de te pedir desculpa.

Sentei-me ao lado dela e ela abraçou-me com força.

— Sei que tens carregado o mundo às costas. Não é justo para ti. Mas prometo que vou lutar. Por ti e pelo Tiago.

Chorámos juntas. Pela primeira vez em semanas, senti-me menos sozinha.

Os meses seguintes foram uma montanha-russa. A minha mãe foi operada, começou a quimioterapia. O cabelo caiu-lhe todo. O meu pai arranjou um segundo emprego para pagar as contas. Eu tomava conta do Tiago, fazia o jantar, estudava à noite. Às vezes sentia raiva de tudo e de todos. Outras vezes, sentia uma força estranha dentro de mim.

Houve dias em que pensei em desistir. Em fugir. Mas depois olhava para a minha mãe, tão frágil e tão corajosa, e sabia que não podia.

A escola tornou-se um refúgio. A professora de Português começou a dar-me livros para ler, dizia que eu tinha talento para escrever. Pela primeira vez, pensei que talvez o futuro pudesse ser diferente.

A doença da minha mãe uniu-nos e separou-nos ao mesmo tempo. O meu pai e eu discutíamos por tudo e por nada. O Tiago fechou-se no seu mundo. Mas havia momentos de ternura: um abraço inesperado, um sorriso entre lágrimas, um jantar improvisado à luz das velas quando cortaram a eletricidade.

No Natal desse ano, a minha mãe estava magra e pálida, mas insistiu em fazer o bacalhau. Sentámo-nos à mesa, de mãos dadas, e agradecemos por estarmos juntos. Pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.

Hoje, dois anos depois, a minha mãe está em remissão. O cabelo voltou a crescer, embora mais fino. O meu pai ainda trabalha demais, mas sorri mais vezes. O Tiago já não faz xixi na cama e até me ajuda a estudar.

Eu? Eu cresci demasiado depressa. Mas aprendi que a dor pode ser uma professora cruel — e que o amor é mais forte do que qualquer doença.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem este drama em silêncio? Quantos filhos carregam o peso do mundo sem ninguém saber? E vocês, já sentiram que a vida vos obrigou a crescer antes do tempo?