No Limite do Ano: Entre o Silêncio e o Grito

— Vais mesmo ficar aí sentada, Inês? — A voz do Rui ecoa da sala, misturada com o som da televisão e das gargalhadas dos nossos amigos. O cheiro a bacalhau com natas ainda paira no ar, mas eu só sinto o peso do silêncio entre nós.

Respiro fundo, tentando encontrar coragem para responder. O relógio marca 23h40. Lá fora, já se ouvem os primeiros foguetes. Sinto o frio da noite a entrar pela janela mal fechada da cozinha, mas é dentro de mim que tudo gela.

— Não me apetece, Rui. Só isso. — Tento manter a voz firme, mas sei que ele percebe a hesitação.

Ele aparece à porta, copo de vinho na mão, sorriso forçado. — É sempre a mesma coisa, Inês. Sempre a estragar a festa. Não percebo porque insistes em ficar assim, fechada no teu mundo.

Queria gritar-lhe que não é o mundo que me fecha, mas ele. Mas fico calada. Desde que a mãe morreu, há três anos, que as festas perderam cor para mim. Rui nunca entendeu. Para ele, a vida é feita de barulho, de gente, de risos altos. Para mim, é feita de memórias e silêncios partilhados.

— Não estrago nada, Rui. Só não quero fingir que está tudo bem quando não está. — Sinto as lágrimas a ameaçarem cair, mas engulo-as. Não lhe vou dar esse prazer.

Ele revira os olhos e volta para a sala. Ouço a voz da Sofia, a minha cunhada, perguntar baixinho:

— Está tudo bem com a Inês?

— Está sempre assim, não ligues — responde Rui, alto o suficiente para eu ouvir.

A vergonha queima-me o rosto. Levanto-me devagar e vou até à varanda. O frio corta-me a pele, mas preciso de ar. Lá em baixo, as luzes da cidade piscam como promessas por cumprir. Lembro-me de quando era miúda e acreditava que cada Ano Novo era uma folha em branco. Agora, parece que escrevo sempre as mesmas linhas gastas.

O telemóvel vibra no bolso do casaco. Uma mensagem da minha irmã, Mariana:

«Estás bem? Precisas de falar?»

Queria responder que sim, que preciso de falar, de gritar até me ouvirem. Mas escrevo apenas:

«Estou. Bom ano.»

O fogo-de-artifício começa antes da meia-noite. Os convidados saem para a varanda ao lado, brindam, riem, tiram selfies. Rui aproxima-se de mim com um copo de espumante.

— Anda lá, Inês. Só hoje. Por mim.

Olho-o nos olhos e vejo ali o rapaz por quem me apaixonei há quinze anos. O mesmo sorriso torto, a mesma teimosia. Mas também vejo tudo o que se perdeu pelo caminho: as conversas interrompidas, os sonhos adiados, as noites em que chorei sozinha na casa de banho para não acordar os miúdos.

— Não consigo fingir mais, Rui — digo-lhe baixinho.

Ele franze o sobrolho. — O que é que queres dizer com isso?

— Quero dizer que estou cansada. Cansada de ser invisível na minha própria vida. De ser a mulher que organiza tudo para todos e não tem ninguém que organize nada por ela.

Ele ri-se, nervoso. — Lá estás tu com esses dramas…

— Não é drama, Rui. É dor. E tu nunca quiseste ouvir.

Ele olha em volta, preocupado com quem possa estar a ouvir-nos. — Agora não é altura para isto, Inês.

— Quando é que vai ser? Quando eu desaparecer de vez?

O fogo-de-artifício rebenta no céu e sinto o peito a rebentar também. As lágrimas caem finalmente e não tento escondê-las.

— Preciso de mudar, Rui. Preciso de me encontrar outra vez.

Ele fica calado. Pela primeira vez em anos, não tem resposta pronta.

Volto para dentro e subo ao quarto dos miúdos. O Tomás dorme profundamente; a Leonor mexe-se inquieta na cama. Sento-me ao lado dela e passo-lhe a mão pelo cabelo.

— Mamã? — murmura ela, meio a dormir.

— Estou aqui, meu amor.

Fico ali sentada até ouvir os passos do Rui nas escadas. Ele entra devagar.

— Inês…

— Não quero discutir mais hoje, Rui. Por favor.

Ele senta-se na beira da cama e olha para mim como se me visse pela primeira vez em anos.

— Eu… eu não sabia que te sentias assim.

— Nunca quiseste saber.

Ele baixa os olhos e ficamos em silêncio. Lá fora, os convidados começam a despedir-se; ouço risos abafados e portas a bater.

Quando finalmente descemos à sala, já só está a Sofia a arrumar copos.

— Precisas de ajuda? — pergunto-lhe.

Ela olha para mim com pena disfarçada. — Vai descansar, Inês. Eu trato disto.

Subo ao quarto e fecho a porta atrás de mim. Sento-me na cama e olho para o espelho: vejo uma mulher cansada, mas também vejo uma centelha de força que julgava perdida.

Pego no telemóvel e escrevo à Mariana:

«Amanhã podemos tomar um café? Preciso mesmo de falar.»

Ela responde quase de imediato:

«Claro! Estou aqui para ti.»

Deito-me sem conseguir dormir. Penso em tudo o que perdi: tempo com os miúdos enquanto tentava agradar ao Rui; sonhos antigos de ser professora de literatura; tardes com a mãe na cozinha a fazer filhoses; risos partilhados com a Mariana antes de crescermos e nos afastarmos sem querer.

No escuro do quarto, faço uma promessa silenciosa: este ano vou lutar por mim. Nem que seja só um bocadinho todos os dias.

De manhã acordo cedo e preparo pequeno-almoço para os miúdos antes de Rui descer. Ele entra na cozinha com ar cansado.

— Inês… Sobre ontem à noite…

Levanto a mão para o interromper.

— Não quero falar disso agora, Rui. Preciso de tempo para pensar no que quero para mim… para nós.

Ele assente em silêncio e senta-se à mesa com as crianças.

Saio para apanhar ar fresco e caminho até ao café onde combinei encontrar-me com a Mariana. Ela já lá está, sorriso aberto e olhar preocupado.

— Então? Conta-me tudo — diz ela enquanto me abraça forte.

Desabafo tudo: o vazio, as discussões constantes, o medo de nunca mais me reencontrar. Ela ouve sem julgar e segura-me a mão quando as lágrimas voltam a cair.

— Tens direito a ser feliz, Inês. Não te esqueças disso — diz ela baixinho.

No regresso a casa sinto-me mais leve, como se tivesse deixado parte do peso naquele café antigo do bairro onde crescemos juntas.

Os dias seguintes são estranhos: Rui tenta ser mais presente; ajuda nas tarefas da casa; pergunta-me como estou — mas há uma distância entre nós difícil de atravessar.

Uma noite, depois de pôr os miúdos na cama, sentamo-nos juntos na sala pela primeira vez em muito tempo sem televisão nem telemóveis entre nós.

— Tenho medo de te perder — diz ele finalmente.

Olho-o nos olhos e vejo sinceridade misturada com medo.

— Já me perdeste há muito tempo, Rui… Mas talvez ainda possamos encontrar-nos outra vez — respondo-lhe devagar.

Ficamos ali sentados em silêncio, mãos entrelaçadas, sem saber o que o futuro nos reserva.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem assim — divididas entre o dever e o desejo de serem felizes? Será possível recomeçar depois de tantos anos a viver para os outros? E vocês… já sentiram que se perderam no meio da vossa própria vida?