O Dia em que o Silêncio se Rompeu: A História de Marta e o Peso das Palavras Não Ditas
— Marta, outra vez arroz queimado? — a voz de Luís ecoou pela cozinha, carregada de impaciência. Senti o sangue gelar-me nas veias, como se cada palavra dele fosse uma faca a cortar o pouco de paz que ainda restava entre nós. Olhei para o tacho, o arroz colado ao fundo, e desejei, por um segundo, desaparecer dali. Mas não desapareci. Fiquei, como sempre fiquei, a ouvir, a engolir em seco, a tentar convencer-me de que era só mais um dia, só mais uma crítica, só mais um silêncio.
A verdade é que o silêncio era tudo menos só. Era pesado, denso, preenchia cada canto da nossa casa em Vila Nova de Gaia. Luís nunca foi de grandes gestos, nem de palavras doces. Quando nos conhecemos, na faculdade, ele era reservado, mas tinha um sorriso que me fazia acreditar que, por trás daquela muralha, havia ternura. Casei-me com ele aos vinte e quatro anos, cheia de sonhos simples: uma casa pequena, filhos a correr pelo quintal, domingos de família. Mas os sonhos, com o tempo, foram-se tornando memórias de algo que nunca chegou a acontecer.
A minha mãe avisou-me, numa tarde de chuva, enquanto dobrávamos roupa na sala:
— Marta, o Luís é bom rapaz, mas não é de falar. Vais ter de ser tu a puxar por ele, filha.
Eu sorri, convencida de que o amor tudo podia. Que ingenuidade a minha. O amor, percebi depois, não é feito só de paciência. É preciso reciprocidade, é preciso que alguém também puxe por nós.
Os anos passaram, e a rotina foi-se entranhando. Luís chegava do trabalho, largava a pasta no sofá, sentava-se à mesa e esperava que eu servisse o jantar. Se o arroz estava no ponto, silêncio. Se não estava, crítica. Os nossos filhos, Inês e Tiago, aprenderam cedo a andar de mansinho, a evitar perguntas, a não fazer barulho. O nosso lar tornou-se um lugar onde se respirava medo de desagradar.
Uma noite, Inês entrou na cozinha enquanto eu lavava a loiça. Tinha os olhos vermelhos, a voz trémula:
— Mãe, o pai gritou comigo porque deixei a luz do quarto acesa. Eu só queria ler mais um bocadinho…
Abracei-a, sentindo-me impotente. Queria protegê-la, mas como, se nem a mim conseguia proteger? O Luís não era violento, nunca levantou a mão, mas as palavras dele eram como pequenas pedras, lançadas dia após dia, até formarem um muro entre nós todos.
A minha irmã, Sofia, dizia-me para não aceitar:
— Marta, tu não és criada dele! Tens de lhe dizer que também trabalhas, que também te cansas. Não podes continuar assim.
Mas eu tinha medo. Medo de perder o pouco que tínhamos, medo de desestabilizar os miúdos, medo de ficar sozinha. O medo era o meu maior companheiro.
Até aquela noite.
Era sexta-feira, chovia lá fora, e o cheiro a arroz queimado ainda pairava no ar. Luís entrou na cozinha, olhou para mim com aquele olhar de desdém e disse:
— Não sei como é que consegues estragar uma coisa tão simples. Até a minha mãe fazia melhor.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era só pelo arroz. Era por cada vez que me senti invisível, por cada vez que me calei para não criar ondas, por cada vez que vi os meus filhos encolherem-se com medo do tom de voz do pai.
— Chega, Luís. — A minha voz saiu baixa, mas firme. Ele olhou para mim, surpreendido. — Chega de me tratares assim. Chega de achares que só tu é que tens direito a estar cansado, a estar frustrado. Eu também trabalho, também me esforço, também erro. E sabes que mais? Prefiro mil vezes arroz queimado do que este silêncio podre que temos aqui em casa.
Ele ficou calado, como se não soubesse o que responder. Pela primeira vez, vi-o hesitar. Inês apareceu à porta, os olhos arregalados. Tiago veio atrás dela, agarrado ao boneco de peluche. Senti-os a olhar para mim, à espera de ver o que ia acontecer.
— Marta, estás a exagerar… — tentou Luís, mas eu não deixei.
— Não, Luís. Não estou a exagerar. Estou a dizer o que devia ter dito há anos. Não quero que os nossos filhos cresçam a pensar que isto é normal. Não quero que a Inês ache que tem de se calar para agradar a alguém. Não quero que o Tiago pense que ser homem é ser frio e distante.
A minha voz tremia, mas não recuei. Pela primeira vez, senti-me dona de mim.
Luís saiu da cozinha sem dizer mais nada. Ouvi a porta do quarto a bater. Fiquei ali, de pé, com as mãos a tremer, os miúdos a olharem para mim. Abracei-os, e chorámos juntos. Não era só pelo arroz, nem pelo grito. Era por tudo o que ficou por dizer durante anos.
Nessa noite, não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha suportado, em tudo o que tinha deixado de ser para manter uma paz que nunca existiu. Lembrei-me da minha mãe, da minha irmã, das vezes em que quis fugir e não tive coragem.
No dia seguinte, Luís saiu cedo, sem me olhar nos olhos. Não sei para onde foi. Passei o dia com as crianças, tentámos fazer panquecas, rimos, chorámos mais um bocadinho. À noite, ele voltou. Sentou-se à mesa, calado. Eu servi o jantar, sem dizer nada.
Depois de comer, levantou-se e veio ter comigo à cozinha.
— Marta… — a voz dele era baixa, quase um sussurro. — Eu não sabia que te sentias assim.
Olhei para ele, cansada.
— Nunca quiseste saber, Luís. Sempre achaste que estava tudo bem enquanto ninguém reclamasse. Mas não está tudo bem. E eu não vou mais fingir.
Ele assentiu, os olhos marejados de lágrimas que nunca vi nele antes.
— Não quero perder-te. Não quero perder os miúdos. Mas não sei como mudar.
— Então aprende, Luís. Ou vamos todos perder-nos uns aos outros.
A partir desse dia, as coisas não mudaram de um momento para o outro. Houve dias maus, dias em que quase desisti. Mas também houve dias em que Luís tentou, em que me ouviu, em que pediu desculpa. Fomos à terapia de casal, conversámos muito, chorámos ainda mais. Os miúdos começaram a sorrir mais, a falar mais alto, a ser crianças outra vez.
Hoje, olho para trás e pergunto-me: porque é que demorei tanto tempo a falar? Porque é que tantas mulheres como eu se calam, achando que é normal viver assim? Será que o medo de perder é maior do que o medo de nunca sermos realmente felizes?
E vocês, já sentiram que o silêncio vos estava a sufocar? O que fariam se estivessem no meu lugar?