“Faz as tuas compras e cozinha tu mesmo, já não te vou sustentar mais”: O dia em que o meu casamento mudou para sempre

“Faz as tuas compras e cozinha tu mesmo, já não te vou sustentar mais.”

As palavras saíram-me da boca antes de conseguir travá-las. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O António olhou para mim, incrédulo, com o garfo suspenso a meio caminho da boca. O cheiro do bacalhau à Brás, que eu tinha acabado de fazer, parecia agora enjoativo. Senti as mãos a tremer e o coração a bater tão forte que temi que ele ouvisse.

“Como assim, Maria? Estás a brincar?”

Não estava. Não podia mais. Durante anos, fui a mulher perfeita: trabalhava no hospital de Santa Maria durante o dia, chegava a casa exausta e ainda assim punha a mesa, cozinhava, lavava a roupa, tratava das contas e dos filhos. O António, sempre sentado no sofá, dizia que estava cansado do trabalho dele — era motorista de autocarros — mas nunca percebia o cansaço nos meus olhos.

“Não estou a brincar. Estou cansada. Não aguento mais ser tua mãe.”

Ele largou o garfo com força. O barulho ecoou na cozinha pequena do nosso apartamento em Benfica. Os miúdos estavam no quarto, provavelmente a ouvir tudo. Senti uma pontada de culpa, mas não consegui parar.

“Então é isto? Depois de vinte anos juntos, atiras-me isso à cara?”

“Não é de agora, António. Tu é que nunca quiseste ver.”

Lembro-me do início do nosso casamento. Eu tinha vinte e três anos, ele vinte e oito. Casámos na igreja de São Domingos, com uma festa simples mas cheia de alegria. Os meus pais diziam que ele era trabalhador e honesto — e era verdade. Mas com o tempo, a honestidade dele tornou-se silêncio, e o trabalho dele tornou-se desculpa para não fazer nada em casa.

Os anos passaram depressa. Vieram os filhos — o Miguel e a Inês — e com eles vieram as noites mal dormidas, as contas por pagar, as discussões sobre dinheiro e sobre quem ia buscar as crianças à escola. Eu fazia tudo. Sempre tudo.

Lembro-me de um dia em que cheguei a casa depois de um turno de doze horas no hospital. Encontrei o António a ver futebol com os amigos na sala. A cozinha estava um caos, os miúdos com fome. Quando lhe pedi ajuda, ele respondeu: “Deixa lá isso agora, Maria. Depois eu trato.” Mas nunca tratava.

Naquela noite do bacalhau à Brás, tudo explodiu.

“Queres acabar com o casamento? É isso?”

“Quero acabar com esta vida em que só eu existo para os outros.”

Ele levantou-se da mesa e saiu para a varanda. Fiquei sozinha na cozinha, a olhar para os pratos por lavar. Senti-me vazia. Lembrei-me da minha mãe, que sempre dizia: “Uma mulher tem de aguentar.” Mas eu não queria aguentar mais.

No dia seguinte, António tentou agir como se nada tivesse acontecido. Levantou-se cedo, tomou banho e saiu para o trabalho sem dizer nada. Eu preparei os pequenos-almoços dos miúdos em silêncio. A Inês olhou para mim com aqueles olhos grandes e perguntou:

“Mãe, tu e o pai vão-se separar?”

Abracei-a com força.

“Não sei, filha. Mas às vezes precisamos de mudar para sermos felizes.”

Durante semanas, a tensão foi crescendo em casa. O António começou a fazer as compras dele próprio — mal feitas, claro — e tentava cozinhar qualquer coisa só para ele. Os miúdos sentiam-se perdidos no meio daquela guerra fria.

Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me sozinha na sala escura. Ouvi o som dos carros lá fora e pensei em tudo o que tinha perdido de mim mesma ao longo dos anos: os sonhos de ser médica (fiquei-me por enfermeira), os jantares com amigas que deixei de ver porque “o António não gosta”, as viagens adiadas porque “não há dinheiro”.

Comecei a sair mais cedo do trabalho para caminhar junto ao Tejo antes de ir para casa. Precisava de respirar outro ar. Uma tarde encontrei a Ana Paula, uma amiga antiga da faculdade.

“Maria! Há quanto tempo! Estás bem?”

Sorri-lhe, mas os olhos encheram-se-me de lágrimas.

“Não sei se estou bem… Sinto-me perdida.”

Ela ouviu-me durante uma hora inteira sem julgar. Falámos sobre tudo: os maridos ausentes, os filhos crescidos demais para precisarem de nós como antes, o medo de ficarmos sozinhas.

“Sabes que não tens de aceitar tudo só porque é suposto?” disse ela.

Essas palavras ficaram comigo durante dias.

O António começou a chegar mais tarde a casa. Uma noite apareceu bêbado. Gritou comigo à frente dos miúdos:

“És uma ingrata! Dei-te tudo!”

“Deste-me o quê? Trabalho? Solidão? Uma casa onde ninguém fala?”

O Miguel chorou no quarto dele nessa noite. Fui ter com ele e sentei-me na cama.

“Mãe… eu não quero que vocês se separem.”

Abracei-o e chorei também.

No trabalho comecei a falhar. Uma colega percebeu e chamou-me à parte:

“Maria, tens de cuidar de ti primeiro.”

Mas como? Como cuidar de mim quando toda a gente depende de mim?

Um sábado à tarde decidi sair sozinha. Fui ao cinema ver um filme francês qualquer — nem me lembro do nome — só queria estar longe de casa por umas horas. Quando voltei, encontrei o António sentado à mesa da cozinha com uma mala feita.

“Vou passar uns dias em casa da minha irmã.”

Assenti em silêncio. Não chorei. Não gritei. Só senti um alívio estranho misturado com medo.

Os dias seguintes foram estranhos: silêncio em casa, menos discussões mas também menos vida. Os miúdos perguntavam pelo pai; eu dizia que precisava de tempo para pensar.

Comecei a fazer pequenas coisas por mim: comprei um livro novo, pintei as unhas pela primeira vez em anos, fui tomar café com a Ana Paula sem pedir licença a ninguém.

O António ligava todos os dias para saber dos filhos mas nunca perguntava por mim.

Uma noite ligou:

“Maria… podemos falar?”

Encontrámo-nos num café perto do Campo Pequeno. Ele parecia mais velho, cansado.

“Eu não sabia que estavas tão infeliz.”

“Eu também não sabia… até não aguentar mais.”

Ficámos ali sentados muito tempo sem saber o que dizer.

Hoje passaram seis meses desde aquela noite do bacalhau à Brás. O António voltou para casa mas as coisas mudaram: agora divide as tarefas comigo (às vezes resmunga, mas faz), fala mais com os filhos e até me pergunta como foi o meu dia.

Não sei se voltámos por amor ou por medo da solidão — talvez um pouco dos dois.

Às vezes olho para ele e pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas? Quantas Marias há em Portugal presas entre o amor e o sacrifício?

E vocês? Até onde iriam por alguém antes de deixarem de ir por vocês mesmas?