Prazan frigorífico, coração cheio: A história de um filho que não quer sair de casa

— Rui, outra vez o frigorífico vazio? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz enquanto fechava a porta com mais força do que queria. O silêncio da cozinha era cortante. O relógio marcava sete da tarde e o cheiro a café velho pairava no ar. O meu marido, António, estava sentado à mesa, olhar perdido no telemóvel, como se procurasse ali uma saída para o que não conseguíamos resolver em casa.

Do corredor, ouvi o ranger da porta do quarto do Rui. Passos arrastados, hesitantes. Ele apareceu à porta da cozinha, cabelo desgrenhado, olhos semicerrados pela luz. — Mãe, não tive tempo de ir às compras. Estive a trabalhar — murmurou, sem me encarar.

— Trabalhar? Rui, passas o dia inteiro fechado nesse quarto! — explodiu António, largando finalmente o telemóvel. — Não vês que a tua mãe não pode fazer tudo sozinha?

O Rui encolheu os ombros, como se o peso do mundo lhe tivesse caído em cima. — Eu ajudo quando posso…

— Quando podes? — interrompi, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Rui, tens 32 anos. Não é suposto já teres a tua vida?

O silêncio caiu de novo, pesado. O Rui virou costas e voltou para o quarto. A porta fechou-se com um estalido seco. Fiquei ali, de mãos vazias, a olhar para o frigorífico vazio, a sentir-me mais sozinha do que nunca.

Lembro-me de quando o Rui era pequeno. Era um miúdo alegre, curioso, sempre a fazer perguntas. Tinha sonhos: queria ser astronauta, depois engenheiro, depois músico. Mas a vida foi-lhe fechando portas. O curso na faculdade ficou a meio — “não era bem aquilo” — e os trabalhos foram sempre temporários, mal pagos. Agora trabalha remotamente para uma empresa de informática em Lisboa, mas raramente sai do quarto. Não tem amigos, não tem namorada, não tem planos.

As discussões começaram há dois anos. Primeiro, eram só pequenas farpas: “Vais sair hoje?”, “Já pensaste em procurar casa?”. Depois vieram as acusações: “Estás a desperdiçar a tua vida!”, “Não podes viver aqui para sempre!”. O Rui respondia sempre com o mesmo olhar vazio, como se estivéssemos a falar noutra língua.

Uma noite, depois de mais uma discussão, sentei-me na cama e chorei baixinho. O António entrou no quarto e sentou-se ao meu lado. — Maria, não podemos obrigá-lo a sair. Mas isto não é vida para ninguém.

— Eu sei — sussurrei. — Mas tenho medo do que lhe possa acontecer lá fora. E se não conseguir? E se se perder?

O António suspirou. — Ele já está perdido, Maria. Só não quer admitir.

No dia seguinte, tentei falar com o Rui calmamente. Preparei-lhe o pequeno-almoço favorito — torradas com doce de abóbora e café forte — e esperei que saísse do quarto. Quando finalmente apareceu, sentei-me à mesa com ele.

— Rui, filho… precisamos de conversar.

Ele olhou para mim, olhos vermelhos de cansaço ou talvez de choro. — Mãe, eu sei o que vais dizer. Mas não é assim tão fácil. Lá fora… tudo parece assustador. Aqui sinto-me seguro.

— Mas não podes viver sempre assim, Rui. Tens de tentar. Nem que seja dar um passo de cada vez.

Ele abanou a cabeça. — Não percebes… Eu tentei. Fui a entrevistas, procurei casas. Tudo caríssimo, ninguém quer saber de mim. Sinto-me… inútil.

Apertei-lhe a mão por cima da mesa. — Nunca serás inútil para mim. Mas tens de lutar por ti.

O António entrou na cozinha nesse momento, interrompendo a conversa. — Maria, deixa-o em paz. Se ele não quer sair, não sai. Não podemos viver em guerra todos os dias.

Mas a guerra continuava, silenciosa, feita de olhares, portas fechadas, refeições solitárias. A casa encheu-se de silêncios e de pequenas mágoas. Até a minha filha mais nova, Inês, que já saiu de casa há anos, começou a ligar menos vezes. “Não aguento ouvir-vos sempre a discutir”, dizia ela ao telefone.

Uma tarde, depois de mais um dia sem notícias do Rui, decidi ir ao quarto dele. Bati à porta suavemente. — Rui? Posso entrar?

Ele não respondeu, mas entreabri a porta mesmo assim. O quarto estava escuro, cortinas fechadas, cheiro a mofo e roupa suja espalhada pelo chão. O Rui estava sentado em frente ao computador, auriculares nos ouvidos.

— Rui… — comecei, mas ele tirou os auriculares e olhou para mim com uma expressão de cansaço infinito.

— Mãe, não quero falar agora.

— Só quero saber se estás bem.

Ele suspirou. — Estou… mais ou menos.

Sentei-me na beira da cama dele. — Rui, tens de sair daqui de vez em quando. Vais enlouquecer fechado neste quarto.

Ele encolheu os ombros. — Não tenho para onde ir.

— Tens amigos…

Ele riu-se, um riso amargo. — Quais amigos? Toda a gente seguiu com a vida deles. Eu fiquei para trás.

Fiquei ali sentada, sem saber o que dizer. Senti-me impotente, como se estivesse a ver o meu filho afogar-se e não conseguisse lançar-lhe uma bóia.

Nessa noite, depois do jantar — que comemos em silêncio — o António virou-se para mim na sala:

— Maria, isto não pode continuar assim. Ou ele muda ou eu vou-me embora por uns tempos. Preciso de respirar.

Olhei para ele, chocada. — Vais-me deixar?

— Não é isso… Só preciso de espaço. Isto está a destruir-nos a todos.

Na manhã seguinte, acordei com o som da porta da rua a bater. O António tinha saído cedo para ir para casa da irmã em Aveiro. Fiquei sozinha com o Rui numa casa grande demais para dois adultos que mal se falam.

Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: trabalho, compras rápidas, refeições solitárias. O Rui quase não saía do quarto. Eu sentia-me cada vez mais invisível.

Uma noite, não aguentei mais e bati à porta do Rui com força.

— Rui! Isto não pode continuar assim! Estás a destruir esta família! O teu pai foi-se embora por tua causa! Eu já não sei o que fazer!

Ele abriu a porta devagarinho, olhos cheios de lágrimas.

— Desculpa, mãe… Eu não queria… Eu só não sei como sair daqui…

Abracei-o com força, como quando era pequeno e tinha medo do escuro.

— Vamos tentar juntos, Rui. Um passo de cada vez.

No dia seguinte fomos juntos ao supermercado. Pequena vitória: ele saiu de casa, ajudou-me com as compras, até sorriu à senhora da caixa.

À noite ligámos ao António em videochamada. O Rui pediu desculpa ao pai e prometeu tentar mudar.

Não sei se vai resultar. Não sei se algum dia o Rui vai conseguir sair de casa e construir a sua vida. Mas naquele momento, enquanto arrumávamos juntos as compras no frigorífico finalmente cheio, senti uma réstia de esperança.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem este mesmo drama em silêncio? Quantas mães sentem este vazio no peito? Será que algum dia conseguimos mesmo largar os nossos filhos? O que fariam vocês no meu lugar?