Quando a Minha Avó Descobriu Que o Neto Esperava Pela Casa Dela
— Então é isso, mãe? — perguntei, com a voz embargada, enquanto olhava para a minha avó sentada à cabeceira da mesa da cozinha, as mãos enrugadas a tremerem ligeiramente sobre a toalha de linho. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o peso do silêncio. A minha mãe, Maria do Carmo, desviou o olhar, fitando o chão como se ali encontrasse coragem para responder.
— Marta, não é assim tão simples… — murmurou ela, mas a avó interrompeu-a, a voz mais firme do que eu esperava de alguém com oitenta e três anos.
— Não é simples? Então explica-me, Carmo, porque é que o teu filho, o meu neto, já anda a perguntar pelo testamento? — O olhar da avó era duro, quase cortante. Senti um nó no estômago. O meu primo, Rui, sempre foi o favorito da minha mãe. Desde pequeno, era ele quem recebia os melhores presentes, quem era chamado para as festas, quem era defendido nas discussões. Eu, a filha mais velha, sempre fui a que ficava para trás, a que tinha de ser forte, a que não podia falhar.
Aquela manhã de domingo, que devia ser de paz, transformou-se num campo de batalha. O Rui não estava ali, claro. Nunca estava quando era preciso enfrentar as consequências. Mas as palavras dele ecoavam na sala, através da minha mãe, como se fossem facas.
— Ele só perguntou porque está preocupado com a avó — tentou justificar-se a minha mãe, mas a avó não se deixou enganar.
— Preocupado? Ou ansioso para saber quando é que pode pôr as mãos na casa onde cresci, onde criei os meus filhos, onde enterrei o teu pai? — A avó levantou-se com dificuldade, mas com uma dignidade que me fez sentir vergonha de todas as vezes que duvidei da sua força.
Lembrei-me de quando era pequena e corria pelo quintal atrás das galinhas, a avó a rir-se, o sol a bater nas pedras da calçada. Agora, tudo aquilo parecia tão distante, como se pertencesse a outra vida. A casa da avó era mais do que paredes e telhado; era o coração da nossa família. E agora, por causa de um papel, de uma herança, tudo estava a desmoronar-se.
— Mãe, por favor… — tentei intervir, mas a minha voz saiu fraca. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. Não queria mostrar fraqueza. Não ali, não naquele momento.
A avó olhou para mim, os olhos azuis já baços mas ainda cheios de vida.
— Marta, tu sempre foste a única que vinha cá sem pedir nada. Só para me fazer companhia, para me ouvir. Não mereces isto. — A voz dela quebrou-se um pouco, e eu senti o coração apertar-se. Queria abraçá-la, dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas sabia que era mentira.
A minha mãe, finalmente, ergueu os olhos. Vi neles uma mistura de culpa e raiva, como se estivesse presa entre o amor à mãe e a lealdade ao filho.
— O Rui está a passar dificuldades, mãe. Tu sabes que ele perdeu o emprego, que a Andreia o deixou. Ele só queria saber se podia contar com alguma coisa… — A voz dela era quase um sussurro.
A avó riu-se, um riso amargo.
— Contar com alguma coisa? E eu? Posso contar com alguém? Ou estou aqui só à espera de morrer para vos facilitar a vida?
O silêncio caiu de novo. Senti-me sufocar. Lembrei-me de todas as vezes que a minha mãe me dizia para ser compreensiva com o Rui, porque ele era mais sensível, porque precisava de mais apoio. Mas nunca ninguém perguntou o que eu precisava.
— Mãe, eu não quero nada da casa. Só quero que fiques bem — disse, finalmente, a voz trémula. A avó sorriu-me, um sorriso triste.
— Eu sei, filha. Mas às vezes o querer dos outros pesa mais do que o nosso.
Nesse momento, ouvi a porta da rua bater. O Rui entrou, de cabeça baixa, as mãos nos bolsos. O ambiente ficou ainda mais tenso. A minha mãe levantou-se de imediato, como se tivesse sido chamada à ordem.
— Rui, vieste… — disse ela, mas ele nem olhou para ela. Dirigiu-se diretamente à avó.
— Avó, desculpa. Eu só queria saber se… se podia ficar aqui uns tempos. Não tenho para onde ir. — A voz dele era sincera, mas havia nela uma nota de desespero que me fez estremecer.
A avó olhou para ele longamente. Vi-lhe nos olhos a luta interna entre o amor de avó e a mágoa de se sentir usada.
— Esta casa sempre foi de portas abertas, Rui. Mas não quero sentir que estou a mais na minha própria casa. — As palavras dela foram duras, mas justas.
O Rui baixou a cabeça, murmurando um obrigado quase inaudível. A minha mãe foi ter com ele, abraçando-o, mas ele afastou-se, como se o toque dela o queimasse.
— Não quero discussões, mãe. Só quero paz — disse ele, sentando-se no sofá, os olhos fixos no chão.
Eu fiquei ali, parada, sem saber o que fazer. Queria gritar, queria chorar, queria fugir dali. Mas fiquei. Porque era isso que sempre fiz: ficar, aguentar, ser o pilar da família.
Os dias seguintes foram um inferno. O Rui andava pela casa como um fantasma, evitando toda a gente. A minha mãe tentava agradar-lhe, mas ele rejeitava tudo. A avó fechou-se ainda mais, passando horas no quarto, a olhar para fotografias antigas. Eu tentava manter a paz, mas sentia-me a desmoronar por dentro.
Uma noite, ouvi vozes na sala. Levantei-me devagar e fui espreitar. O Rui e a minha mãe discutiam em surdina.
— Não podes pressionar a avó assim! — sussurrava a minha mãe, desesperada.
— Preciso daquela casa, mãe! Preciso de vender aquilo, pagar as dívidas! — O Rui estava à beira das lágrimas.
— Ela ainda está viva, Rui! — A minha mãe parecia finalmente perceber o absurdo da situação.
— Pois, mas por quanto tempo? — O Rui disse isto com uma frieza que me gelou o sangue.
Voltei para o meu quarto, o coração aos pulos. No dia seguinte, sentei-me com a avó na varanda, ao sol. Ela segurou-me a mão.
— Sabes, Marta, às vezes penso que devia vender a casa já. Dar o dinheiro a quem precisa e ir para um lar. Assim acabava-se esta guerra.
— Não faças isso, avó. Esta casa é tua. É o teu lar. — As lágrimas correram-me pela cara.
Ela sorriu-me, limpando-me as lágrimas com os dedos trémulos.
— O lar de uma pessoa não são as paredes, filha. São as pessoas. E eu já não sei se ainda tenho família.
Aquelas palavras ficaram-me gravadas. Nos dias seguintes, tentei falar com o Rui, tentei fazê-lo ver que estava a magoar toda a gente. Mas ele estava cego pelo desespero. A minha mãe, dividida, acabou por se afastar de mim, talvez por vergonha, talvez por não saber como lidar com tudo aquilo.
O tempo passou. A avó foi ficando mais fraca. No último Natal, sentámo-nos todos à mesa, mas o ambiente era gelado. O Rui mal falou, a minha mãe chorou em silêncio. Eu tentei animar a avó, mas ela parecia já não estar ali.
Quando a avó morreu, meses depois, a casa ficou vazia. O Rui vendeu-a logo, sem olhar para trás. A minha mãe mudou-se para Lisboa, eu fiquei sozinha, com as memórias e a dor.
Às vezes pergunto-me: valeu a pena? O que é uma casa sem família? Será que algum dia conseguimos perdoar quem nos magoou tanto? E vocês, o que fariam no meu lugar?