Onde Pertenco: A História de uma Mãe, um Filho e as Paredes do Meu Lar
— Não acredito no que estou a ouvir, Miguel! — sussurrei para mim mesma, encostada à porta do quarto, o coração a bater tão forte que temi que eles me ouvissem do corredor. A voz da minha nora, Andreia, soava baixa mas determinada: — Se não resolvermos isto agora, nunca mais conseguimos o apartamento. A tua mãe já não está bem, Miguel. Precisa de cuidados, e nós precisamos de espaço para a nossa família.
O meu filho respondeu, hesitante, como se ainda restasse nele uma réstia de dúvida: — Mas ela sempre disse que queria ficar aqui até ao fim. Não sei se consigo fazer-lhe isto, Andreia.
Senti as pernas fraquejarem. O chão parecia fugir-me debaixo dos pés. O apartamento onde vivi mais de quarenta anos, onde vi o Miguel dar os primeiros passos, onde chorei a morte do meu marido, onde plantei as minhas roseiras na varanda… Agora era apenas um bem a ser disputado. Um obstáculo para a felicidade deles. E eu, a mãe, a avó, era um fardo.
Naquela noite, não dormi. Fiquei sentada na sala, a olhar para as fotografias antigas, a ouvir o tic-tac do relógio de parede. Lembrei-me de quando o Miguel era pequeno e vinha pedir-me colo depois de um pesadelo. Lembrei-me de como lhe prometi que nunca o deixaria sozinho. Agora era ele que queria deixar-me.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço, pus a mesa para três, como sempre. Quando eles se sentaram, sorri, mas sentia o rosto rígido, como se usasse uma máscara. O Miguel olhou-me de lado, talvez sentisse que eu sabia. Andreia, sempre prática, foi direta ao assunto:
— D. Teresa, já pensou em como seria bom ter companhia, fazer novas amizades? Os lares hoje em dia são muito bons, sabe? Tem atividades, médicos, tudo o que precisa.
Olhei-a nos olhos. — Prefiro a solidão da minha casa à companhia forçada de estranhos. Aqui estão as minhas memórias, Andreia. Aqui sou eu.
O Miguel suspirou, passou a mão pelo cabelo. — Mãe, não é por mal. Só queremos o melhor para ti. E… — hesitou — nós também precisamos de mais espaço. A Leonor já está crescida, precisa de um quarto só para ela.
A minha neta, Leonor, entrou na sala nesse momento, com o uniforme da escola e o cabelo despenteado. Olhou para mim, depois para os pais, sentindo a tensão. — O que se passa?
— Nada, querida — disse eu, forçando um sorriso. — Só estamos a conversar.
Mas não era nada. Era tudo. Era o futuro a ser decidido sem mim, como se eu já não estivesse ali. Passei o dia a pensar no que fazer. Falar com a minha irmã, pedir conselhos à vizinha D. Rosa, que sempre teve uma palavra amiga. Mas no fundo sabia: era comigo que tinha de resolver isto.
À noite, chamei o Miguel à sala. Sentei-me na poltrona, ele no sofá, como quando era pequeno e vinha confessar-me as traquinices.
— Miguel, ouve-me bem. Sei o que andam a planear. Ouvi-vos ontem à noite. Senti-me traída, magoada. Sou tua mãe, dei-te tudo o que pude. Este apartamento é o meu lar. Não vou sair daqui enquanto tiver forças para subir as escadas e regar as minhas flores. Se quiseres conversar sobre o futuro, estou disposta. Mas não aceito ser descartada como um móvel velho.
Ele ficou calado, olhos cheios de lágrimas. — Mãe, desculpa. Eu… não queria magoar-te. Só pensei que…
— Pensaste em ti, Miguel. E eu compreendo. Mas pensa também em mim. O que é que me resta se me tirarem daqui?
Nos dias seguintes, a tensão era palpável. Andreia evitava-me, Leonor andava calada. O Miguel tentava agradar-me, trazia-me flores, perguntava se precisava de alguma coisa. Mas eu sabia que a questão não estava resolvida. O advogado da família ligou-me, dizendo que o Miguel tinha pedido informações sobre a escritura do apartamento. Senti o sangue gelar-me nas veias.
Fui falar com a D. Rosa. — Não deixes que te tirem o que é teu, Teresa. Tens direitos. Fala com um advogado, protege-te. Os filhos às vezes esquecem-se de que as mães também têm voz.
Na semana seguinte, reuni a família. Sentei-os à mesa da sala, como tantas vezes fiz para celebrar aniversários ou discutir problemas. Mas desta vez era diferente. Era a minha vida que estava em jogo.
— Quero deixar isto claro: não vou para lado nenhum. Este apartamento é meu, foi o vosso pai que mo deixou. Se algum dia não puder cuidar de mim, podemos falar sobre alternativas. Mas não vou ser empurrada para um lar só porque vos dá jeito. E se insistirem, vou defender-me. Já falei com um advogado.
Andreia levantou-se, furiosa. — Isto é ridículo! Estamos a tentar ajudar-te!
— Ajudar-me? — respondi, sentindo a voz tremer. — Ou ajudar-se a si própria?
O Miguel tentou acalmar-nos, mas a discussão subiu de tom. Leonor começou a chorar, pedindo para pararmos. No final, Andreia saiu batendo a porta, Miguel ficou sentado, derrotado.
Os dias seguintes foram de silêncio e distância. Senti-me sozinha, mas também aliviada por ter defendido o meu direito. Recebi telefonemas de amigas, vizinhas, até da minha irmã em Braga. Todos tinham histórias parecidas: mães postas de lado, pais esquecidos, famílias desfeitas por causa de casas e heranças.
O Miguel acabou por voltar a falar comigo. Pediu desculpa, disse que não sabia lidar com a pressão da Andreia, que sentia culpa e vergonha. Eu abracei-o, mas disse-lhe que a confiança demora a recuperar.
Hoje, continuo no meu apartamento. A Leonor vem visitar-me aos fins de semana, traz-me desenhos e histórias da escola. O Miguel tenta ser mais presente. Andreia ainda me evita, mas já não me ameaça com lares ou escrituras.
Às vezes pergunto-me: como é possível que o amor de uma mãe seja posto à prova por quatro paredes e um pedaço de papel? Será que um lar vale mais do que uma família? E vocês, o que fariam no meu lugar?