O Ano da Viragem: O Ano que Dividiu a Minha Família
— Vais mesmo fazer isto hoje, pai? No teu aniversário?
A minha voz saiu trémula, quase um sussurro, mas o silêncio pesado da sala amplificou cada sílaba. O bolo de aniversário, ainda por cortar, parecia um insulto àquele momento. O meu pai, António, olhou-me com olhos cansados, como se cada ruga no seu rosto fosse uma história que nunca me contou.
— Filha, não há dia certo para isto. Mas já não aguento mais viver nesta mentira.
A minha mãe, Teresa, estava sentada à cabeceira da mesa, as mãos entrelaçadas com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Não chorava. Nunca a vi chorar, mesmo quando o meu irmão mais velho, o Miguel, saiu de casa para nunca mais voltar depois de uma discussão com o pai. O silêncio dela era sempre mais assustador do que qualquer grito.
O meu pai levantou-se, pegou no casaco e, antes de sair, olhou para mim e para a minha irmã, a Sofia, que estava encolhida no canto, como se quisesse desaparecer.
— Preciso de tempo. Preciso de ser honesto convosco e comigo próprio. Vou sair de casa.
A porta fechou-se com um estrondo. O som ecoou pela casa, como um trovão a anunciar uma tempestade que já se fazia sentir há anos.
Durante dias, ninguém falou sobre o assunto. A minha mãe continuou a rotina como se nada tivesse acontecido. Levantava-se cedo, fazia o pequeno-almoço, ia trabalhar no hospital, voltava, fazia o jantar. Eu e a Sofia éramos sombras uma da outra, cruzando-nos nos corredores sem coragem para falar sobre o vazio que o meu pai deixara.
Uma semana depois, a minha mãe chamou-nos à sala. Sentou-se à nossa frente, com um papel na mão.
— Meninas, quero pedir-vos uma coisa. Preciso de um ano. Um ano de silêncio. Não quero falar sobre o divórcio, nem sobre o vosso pai. Quero que estejamos juntas, mas sem perguntas, sem discussões. Depois desse ano, faço o que tiver de fazer.
A Sofia acenou, resignada. Eu senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como podia ela pedir silêncio quando tudo o que eu queria era respostas? Mas acabei por acenar também. O medo de a perder era maior do que a necessidade de saber.
Os meses passaram devagar. O Natal foi um suplício. O meu pai enviou uma mensagem, mas não apareceu. A minha mãe fez o bacalhau como sempre, mas ninguém tocou nele. A Sofia começou a sair mais, a chegar tarde, a evitar-me. Eu refugiei-me nos estudos e no meu noivo, o João, que tentava, em vão, arrancar-me palavras sobre o que se passava em casa.
— Rita, tens de falar comigo. Não podes guardar tudo para ti. — dizia ele, segurando-me as mãos com ternura.
— Não posso, João. Prometi à minha mãe. E, sinceramente, nem sei o que diria se pudesse.
A verdade é que, naquele ano, comecei a perceber que a minha família sempre viveu de silêncios. O meu pai nunca falava sobre o trabalho, mesmo quando chegava tarde e cheirava a álcool. A minha mãe nunca falava sobre o passado, sobre os pais dela, sobre o que sentia. O Miguel desapareceu da nossa vida sem explicações. E eu, sem dar por isso, aprendi a calar tudo o que doía.
Um dia, encontrei a minha mãe a chorar na cozinha. Foi a primeira vez. Estava sentada no chão, encostada ao frigorífico, com uma carta na mão. Quando me viu, tentou limpar as lágrimas, mas não conseguiu.
— Desculpa, filha. Não queria que me visses assim.
Sentei-me ao lado dela, sem saber o que dizer. Ela passou-me a carta. Era do meu pai. Dizia que tinha conhecido outra pessoa, que estava apaixonado, que queria começar de novo. Pediu desculpa, mas dizia que não podia continuar a viver uma mentira.
A minha mãe rasgou a carta em pedaços minúsculos, como se assim pudesse apagar as palavras, os sentimentos, a traição.
— Ele nunca me amou, Rita. Nunca. E eu aceitei isso durante anos, por vocês. Mas agora… agora já não sei quem sou.
Abracei-a, sentindo o peso de todos os anos de silêncio, de todas as palavras não ditas. Pela primeira vez, chorei com ela. Chorei por tudo o que perdemos, por tudo o que nunca fomos.
Quando o ano de silêncio terminou, a minha mãe pediu o divórcio. O meu pai apareceu para assinar os papéis, acompanhado da nova namorada, uma mulher loira, elegante, com um sorriso falso. A Sofia recusou-se a ir. Eu fui, porque precisava de ver com os meus próprios olhos que aquilo era real.
No caminho para casa, a minha mãe disse-me:
— Não deixes que o passado te defina, Rita. Tu mereces ser feliz.
Mas como podia eu ser feliz quando sentia que tudo à minha volta estava a desmoronar-se?
Faltava um mês para o meu casamento. O João era o oposto do meu pai: carinhoso, presente, transparente. Mas eu sentia-me assombrada pelo medo de repetir os erros dos meus pais. Comecei a ter pesadelos, a duvidar de tudo. Será que o amor era mesmo suficiente? Será que eu sabia amar, depois de crescer numa casa onde o amor era apenas uma palavra vazia?
Uma noite, depois de uma discussão sem sentido com o João, sentei-me na varanda e liguei ao Miguel. Não falávamos há anos. Atendeu ao terceiro toque.
— Rita? Está tudo bem?
— Preciso de ti, mano. Sinto que estou a perder-me.
Ele veio ter comigo nessa noite. Falámos durante horas, sobre tudo o que nunca dissemos. Sobre o pai, sobre a mãe, sobre o medo de sermos iguais a eles.
— Não somos eles, Rita. Somos nós. E temos o direito de ser felizes, mesmo que isso signifique fazer diferente.
No dia do casamento, olhei para a minha mãe, para a Sofia, para o Miguel. O meu pai não apareceu. Pela primeira vez, senti que aquela ausência já não doía tanto. Tinha aprendido a viver com o vazio, a preencher os silêncios com a minha própria voz.
Hoje, escrevo esta história porque sei que não sou a única. Quantas famílias vivem de silêncios, de segredos, de medos? Quantos de nós carregam o peso do passado sem saber como largá-lo?
Será que algum dia conseguimos mesmo libertar-nos das marcas da nossa família? Ou será que, no fundo, passamos a vida inteira a tentar ser diferentes, sem perceber que somos feitos dos mesmos pedaços partidos?
E vocês, o que acham? Conseguimos mesmo quebrar o ciclo, ou estamos condenados a repeti-lo?