Vergonha aos Trinta: Porque é que a minha mãe não me deixa amar?
— Marta, não vais sair assim vestida, pois não? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de julgamento e preocupação, como tantas outras vezes.
Parei, já com a mão na maçaneta da porta. O vestido azul que escolhi para o jantar com o Tiago parecia agora demasiado ousado, demasiado “eu” para aquela casa onde tudo era “dela”. Suspirei fundo, sentindo o peso dos meus trinta anos e a vergonha de ainda viver sob o teto dos meus pais, em pleno bairro de Alvalade.
— Mãe, é só um jantar. — Tentei manter a voz calma, mas por dentro fervilhava. — Vou encontrar-me com o Tiago, já te disse.
Ela aproximou-se, olhos apertados, como se procurasse falhas no tecido ou na minha alma. — O Tiago outra vez? Marta, filha, tu mereces melhor. Ele não tem futuro. Trabalha num café! Achas que isso é vida para ti?
O meu pai, sentado no sofá da sala, fingia ler o jornal, mas eu sabia que escutava cada palavra. Desde pequena que aprendi a decifrar os silêncios dele: eram sempre mais pesados do que as palavras da minha mãe.
— Mãe, eu amo-o. — Disse finalmente, quase num sussurro. — Não podes continuar a decidir por mim.
Ela riu-se, amarga. — Amar? Aos trinta anos ainda não sabes o que é amar. E enquanto viveres nesta casa, vais respeitar as minhas regras.
Fechei os olhos por um instante. O cheiro do jantar — arroz de pato — misturava-se com o cheiro da minha própria ansiedade. Quantas vezes já tinha ouvido aquela conversa? Quantas vezes já tinha adiado a minha vida por medo de magoar os meus pais?
O Tiago esperava-me no café onde trabalhava, um sítio pequeno mas acolhedor na Graça. Conhecemo-nos há dois anos, quando fui lá estudar para um exame e ele me ofereceu um café “da casa”. Desde então, tornou-se o meu refúgio dos dias pesados em casa.
Mas a minha mãe nunca aceitou o Tiago. Dizia que ele era “poucochinho”, que eu merecia alguém “com carreira”, alguém “de família”. O Tiago vinha de uma família humilde de Setúbal, perdeu o pai cedo e ajudava a mãe doente. Trabalhava muito e sonhava pouco — pelo menos era assim que a minha mãe o via.
A verdade é que eu própria já duvidei dele. Já me perguntei se não estaria a repetir o ciclo da minha mãe: escolher alguém por amor e depois viver amargurada pelas dificuldades da vida. Mas cada vez que olhava para o Tiago, via nele uma ternura e uma força que nunca encontrei em mais ninguém.
Naquela noite, fui ao encontro dele mesmo assim. Senti-me culpada por desobedecer à minha mãe, mas também livre — uma liberdade tímida, mas real.
— Estás bem? — perguntou ele assim que cheguei, notando logo o meu ar abatido.
— Tive outra discussão com a minha mãe. Ela não entende… nunca vai entender.
Ele pegou na minha mão por cima da mesa. — Não tens de viver assim para sempre, Marta. Podemos procurar um sítio nosso…
Sorri com tristeza. — Não é assim tão fácil. Não tenho dinheiro suficiente para sair de casa. E ela… ela faz-me sentir tão pequena.
O Tiago suspirou. — Eu também não tenho muito, mas juntos conseguimos. Não quero ver-te infeliz.
Ficámos ali em silêncio durante algum tempo, ouvindo o burburinho do café e as vozes das pessoas felizes à nossa volta. Senti inveja delas — inveja de quem pode amar sem pedir licença.
Quando voltei para casa já era tarde. A luz da sala estava acesa e a minha mãe esperava-me sentada à mesa da cozinha.
— Achas bonito chegares a estas horas? — perguntou sem levantar os olhos do chá.
— Tenho trinta anos, mãe…
Ela olhou-me finalmente, olhos vermelhos de raiva ou cansaço — nunca sabia distinguir. — E eu tenho sessenta e dois! E continuo a preocupar-me contigo como se tivesses doze!
Sentei-me à sua frente. — Porque é que não consegues confiar em mim? Porque é que achas sempre que vou fazer as escolhas erradas?
Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder. Depois disse:
— Porque eu fiz as escolhas erradas, Marta. Casei cedo demais, larguei os meus sonhos por causa do teu pai… E agora vejo-te a fazer igual.
Fiquei sem palavras. Nunca tinha ouvido a minha mãe falar assim de si própria. Sempre achei que ela era dura porque queria proteger-me do mundo — nunca pensei que fosse para se proteger a si mesma.
— Eu não sou tu, mãe…
Ela sorriu tristemente. — Não és, mas és minha filha.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar nas palavras dela, no medo dela e no meu próprio medo de ser infeliz ou de magoar quem amo.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. O meu pai continuava calado; às vezes parecia querer dizer algo, mas nunca dizia nada.
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho (sou professora primária numa escola pública), ouvi vozes na sala. Era o Tiago — tinha vindo falar com os meus pais sem me avisar.
— Dona Teresa, eu amo a Marta — dizia ele com voz firme. — Quero construir uma vida com ela. Sei que não sou rico nem doutor, mas dou-lhe tudo o que tenho: respeito e amor.
A minha mãe olhava-o como se fosse um estranho perigoso. O meu pai mantinha-se calado.
— O amor não paga contas — respondeu ela friamente.
O Tiago não desistiu: — Sei disso. Mas juntos conseguimos mais do que separados.
Entrei na sala nesse momento e todos olharam para mim. Senti-me exposta, como se estivesse num tribunal à espera da sentença.
— Mãe… pai… eu amo o Tiago e quero viver com ele. Sei que não vai ser fácil, mas não posso continuar aqui presa ao vosso medo.
A minha mãe levantou-se abruptamente e saiu da sala sem dizer palavra. O meu pai olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo:
— Se é isso que queres… vai atrás da tua felicidade, filha.
Chorei ali mesmo, abraçada ao Tiago.
Nos meses seguintes foi tudo difícil: encontrar uma casa pequena no Lumiar, aprender a viver com pouco dinheiro, lidar com as saudades e as culpas. A minha mãe deixou de me falar durante semanas; só me ligou quando adoeceu com uma gripe forte e precisei de ir cuidar dela.
Nesse dia percebi que ela nunca ia aceitar totalmente as minhas escolhas — mas também percebi que isso já não me podia impedir de viver.
Hoje escrevo esta história sentada na nossa sala minúscula mas cheia de luz e livros (e plantas que o Tiago insiste em trazer). Ainda sinto vergonha às vezes: vergonha de ter demorado tanto tempo a sair de casa; vergonha de não conseguir agradar sempre à minha mãe; vergonha de ter medo do futuro.
Mas também sinto orgulho: orgulho de ter escolhido amar apesar do medo; orgulho de ter aprendido a ouvir o meu coração; orgulho de ser filha dos meus pais e ainda assim ser eu própria.
Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós vivem presos ao medo dos nossos pais? Quantos sacrificam a própria felicidade para não desiludir quem amam? Será possível libertarmo-nos sem perdermos quem somos?