Quando o Passado Bate à Porta: Entre o Perdão e o Orgulho
— És tu? — perguntei, com a voz embargada, ao ver o Rui parado à minha porta, como se tivesse acabado de regressar do café da esquina e não de seis meses de ausência. O pijama colava-se-me ao corpo, o cabelo desgrenhado e os olhos inchados de quem passou mais uma noite a chorar. Ele sorriu, aquele sorriso que tantas vezes me desarmou, mas que agora me fazia sentir náuseas.
— Olá, Mariana. — A voz dele era baixa, quase tímida. Trazia uma mala numa mão e uma garrafa de vinho barato na outra. — Podemos falar?
Fiquei ali, parada, sem saber se devia fechar-lhe a porta na cara ou deixá-lo entrar. O silêncio entre nós era tão pesado que quase podia ouvi-lo a ecoar pelo prédio inteiro. Os vizinhos deviam estar a espreitar pelas miras das portas — sempre atentos à vida dos outros.
— O que é que queres, Rui? — perguntei, tentando manter a dignidade. Mas a verdade é que o coração batia-me tão forte que temi desmaiar.
Ele baixou os olhos.
— Quero voltar para casa. Quero tentar outra vez.
Ri-me, um riso amargo, quase histérico.
— Voltar para casa? Depois de tudo? Depois de me deixares sozinha, depois de ires viver com a Andreia como se eu fosse um erro na tua vida?
Ele suspirou e encostou-se ao batente da porta.
— Não foi assim tão simples…
— Não foi simples? — interrompi-o. — Rui, tu saíste daqui numa sexta-feira à noite e no sábado já tinhas mudado o estado do Facebook para “numa relação” com ela! Achas que eu não vi? Achas que as pessoas não me ligaram logo?
Ele ficou calado. O silêncio dele era uma faca.
Atrás de mim, ouvi passos pequenos. A Leonor apareceu no corredor, com o pijama dos unicórnios e o cabelo emaranhado.
— Mãe… quem é?
O Rui olhou para ela e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A Leonor ficou parada, sem saber se devia correr para ele ou esconder-se atrás de mim. Ela tinha apenas seis anos, mas já aprendera demasiado cedo o significado da palavra “ausência”.
— Olá, princesa… — murmurou ele.
Ela não respondeu. Ficou ali, a olhar para ele como se fosse um estranho.
— Mariana… — insistiu Rui. — Deixa-me entrar. Só quero falar.
Fechei os olhos por um segundo. Senti o peso do mundo nos ombros. Se o deixasse entrar, estaria a abrir a porta ao passado, à dor, à humilhação. Mas se a fechasse… estaria também a fechar a porta ao pai da minha filha, ao homem com quem partilhei metade da minha vida.
Afastei-me e deixei-o passar. Ele entrou devagarinho, como se tivesse medo de quebrar alguma coisa. A mala caiu-lhe no chão com um baque surdo.
Sentámo-nos na sala. A Leonor ficou na porta, indecisa.
— Anda cá, filha — disse-lhe eu.
Ela aproximou-se devagar e sentou-se ao meu lado no sofá. O Rui olhou para nós como quem olha para um quadro antigo e cheio de pó.
— Eu sei que não tenho desculpa — começou ele. — Sei que te magoei. Sei que magoei a Leonor também. Mas percebi que cometi um erro enorme…
— Só agora percebeste? — interrompi-o outra vez. — Depois de meio ano? Depois de viveres com ela?
Ele passou as mãos pelo rosto.
— Achei que estava apaixonado… Achei que precisava de algo novo… Mas tudo aquilo era vazio. Não era real. Eu sentia falta de casa, sentia falta de vocês…
A raiva crescia dentro de mim como uma onda prestes a rebentar.
— E agora achas que podes voltar assim? Como se nada fosse?
Ele abanou a cabeça.
— Não espero que me perdoes já. Nem sei se algum dia vais conseguir perdoar-me. Mas quero tentar reconstruir o que destruí.
A Leonor olhava para ele em silêncio. Vi-lhe uma lágrima a escorrer pela face pequenina.
— Porque é que foste embora? — perguntou ela, num fio de voz.
O Rui engoliu em seco.
— Porque fui estúpido, filha. Porque achei que era melhor assim… mas estava enganado.
A minha mãe ligou-me nesse momento. Olhei para o telemóvel a vibrar na mesa: “Mãe”. Respirei fundo e atendi.
— Mariana! Já viste as notícias? O tempo vai piorar muito este fim-de-semana! Olha que tens de ir buscar pão antes que fechem tudo! E… — fez uma pausa — … está tudo bem contigo?
Olhei para o Rui sentado à minha frente e senti vontade de gritar.
— Está tudo… complicado, mãe.
Ela percebeu logo pelo tom da minha voz.
— Ele voltou?
Assenti em silêncio.
— Não lhe abras a porta! Não te esqueças do que ele te fez! — sussurrou ela do outro lado da linha.
— Mãe… não é assim tão simples…
Desliguei antes que ela dissesse mais alguma coisa. Sabia que ia ligar à minha irmã assim que desligasse comigo. Em menos de dez minutos toda a família ia saber que o Rui estava em casa outra vez.
O resto do dia passou-se num nevoeiro estranho. O Rui tentou ajudar nas tarefas da casa, mas tudo parecia forçado. A Leonor não sabia se devia falar com ele ou ignorá-lo. Eu sentia-me como uma atriz num papel que não queria desempenhar.
À noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me na varanda com um cigarro aceso entre os dedos (voltei a fumar desde que ele saiu). O Rui veio ter comigo.
— Posso sentar-me?
Encolhi os ombros.
— Faz o que quiseres, Rui. Sempre fizeste.
Ele sentou-se ao meu lado e ficou em silêncio durante uns minutos.
— Lembras-te daquela noite em Lagos? Quando ficámos perdidos na praia porque tu querias ver as estrelas?
Sorri sem vontade.
— Lembro-me de tudo, Rui. É esse o problema.
Ele pousou a mão sobre a minha, mas eu afastei-a devagarinho.
— Não sei se consigo perdoar-te — disse-lhe finalmente. — Não sei se algum dia vou conseguir confiar em ti outra vez.
Ele baixou os olhos.
— Eu vou esperar o tempo que for preciso…
Naquela noite dormiu no sofá da sala. Eu fiquei acordada horas a olhar para o teto do quarto, ouvindo-lhe a respiração pesada do outro lado da porta fechada.
No dia seguinte começaram as mensagens da família: “Não deixes esse canalha voltar!”, “Pensa na Leonor!”, “Não te esqueças do que ele te fez!” Até os amigos comuns tomaram partido: uns diziam para lhe dar uma segunda oportunidade; outros achavam que eu devia seguir em frente sozinha.
A verdade é que ninguém sabia o que eu sentia realmente: uma mistura de raiva, saudade e medo do futuro. Tinha medo de ficar sozinha para sempre; medo de voltar a confiar nele; medo do olhar triste da Leonor cada vez que via os pais separados pela casa adentro.
Os dias foram passando devagarinho. O Rui tentava mostrar-se presente: levava a Leonor à escola, fazia jantar (mal feito), arranjava pequenas coisas pela casa. Às vezes apanhava-o a chorar sozinho na varanda; outras vezes era eu quem chorava no duche para ninguém ouvir.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o passado, gritei-lhe:
— Porque é que não me deixaste antes? Porque é que tiveste de me trair? Eu podia ter seguido em frente sem esta ferida aberta!
Ele respondeu baixinho:
— Porque sou cobarde. Porque tive medo de perder tudo e acabei por perder mesmo assim…
A Leonor apareceu à porta do quarto nesse momento:
— Mãe… pai… parem de discutir…
Abraçámo-la os dois ao mesmo tempo e chorámos juntos no chão do corredor.
Hoje faz três meses desde aquele sábado em que ele voltou. Ainda não sei se fiz bem em abrir-lhe a porta ou se devia tê-la fechado para sempre. A confiança não voltou; o amor está ferido; mas há dias em que sinto esperança e outros em que só sinto dor.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes podemos recomeçar antes de nos perdermos completamente? E vocês… já tiveram de escolher entre perdoar ou seguir em frente sozinhos?