O Regime Militar da Minha Sogra: Entre a Fome e a Solidão – O Drama de uma Família Portuguesa
— Já são sete e um! — gritou a Dona Lurdes da cozinha, o relógio de parede a tilintar como se anunciasse o fim do mundo. — O jantar era às sete em ponto, Mariana. Não sei como é na tua casa, mas aqui não há espaço para atrasos.
Senti o sangue gelar-me nas veias enquanto descia as escadas, os degraus rangendo sob os meus pés apressados. O cheiro do bacalhau com natas já se dissipava no ar, substituído por um silêncio pesado. O meu marido, o Rui, olhava para o prato, evitando o meu olhar. A minha filha, a pequena Matilde, brincava com o garfo, sem perceber a tempestade que pairava sobre aquela mesa.
— Desculpe, Dona Lurdes — murmurei, sentando-me. — Tive de dar banho à Matilde, ela sujou-se toda no parque.
Ela nem respondeu. Levantou-se, pegou na travessa e levou-a para a cozinha. O jantar estava terminado para mim. Fiquei ali, a olhar para o prato vazio, sentindo-me uma intrusa na minha própria vida.
Viver com a minha sogra nunca foi o meu sonho. Quando eu e o Rui decidimos voltar para Portugal depois de anos em França, pensámos que seria temporário. Só até arranjarmos trabalho e uma casa nossa. Mas os meses passaram, as entrevistas não davam em nada, e a Dona Lurdes fazia questão de nos lembrar todos os dias que estávamos ali por favor.
— Mariana, não te esqueças de limpar bem a casa de banho — dizia ela todos os sábados de manhã, batendo à porta do nosso quarto antes das oito. — E vê lá se desta vez não deixas cabelos no ralo.
O Rui tentava apaziguar as coisas.
— Mãe, deixa lá a Mariana descansar um bocadinho…
— Descansar? Aqui? Só se for depois de tudo feito! — respondia ela, com aquele tom cortante que me fazia sentir uma adolescente rebelde outra vez.
A verdade é que eu já nem sabia quem era. Antes de tudo isto, era independente, tinha o meu emprego, as minhas rotinas. Agora sentia-me uma sombra, sempre a correr atrás do relógio da Dona Lurdes. Se me atrasava cinco minutos para o pequeno-almoço, encontrava a mesa já levantada. Se demorava mais no banho porque precisava de um momento só para mim, batia-me à porta:
— Mariana! A água não é de graça!
A Matilde começou a perceber que algo não estava bem. Uma noite, enquanto lhe dava banho às pressas para não irritar a avó, ela perguntou:
— Mamã, porque é que a avó está sempre zangada?
Apertei-a contra mim com força.
— Não está zangada contigo, meu amor. Só gosta das coisas muito certinhas.
Mas eu sabia que não era só isso. Era como se Dona Lurdes tivesse medo de perder o controlo da casa — e de nós.
Os domingos eram ainda piores. A família toda vinha almoçar: os cunhados, as sobrinhas barulhentas, o tio Joaquim que nunca largava o copo de vinho. Eu era sempre a última a sentar-me à mesa porque ficava na cozinha a ajudar a sogra.
— Mariana, passa-me os pratos! — gritava ela.
— Mariana, limpa esse molho do chão!
Quando finalmente me sentava, já todos tinham começado a comer. E se ousasse servir-me antes dos outros…
— Aqui em casa há regras! — dizia ela alto para todos ouvirem.
O Rui via tudo isto e tentava defender-me.
— Mãe, deixa a Mariana comer descansada!
Mas ela só bufava e continuava como se nada fosse.
As noites eram longas. Muitas vezes chorava baixinho no quarto para não acordar ninguém. Sentia-me sozinha mesmo rodeada de gente. O Rui dizia que era só uma fase, que íamos conseguir sair dali em breve. Mas cada dia parecia igual ao anterior: horários rígidos, tarefas intermináveis e aquela sensação de nunca ser suficiente.
Um dia cheguei atrasada do supermercado porque apanhei trânsito. Quando entrei em casa, Dona Lurdes estava à porta com os braços cruzados.
— Onde andaste? O almoço já passou!
— Fui às compras… trouxe tudo o que pediu.
Ela nem olhou para os sacos.
— Aqui não é hotel! Se queres horários à tua maneira, arranja casa própria!
Senti uma raiva crescer dentro de mim. Pela primeira vez em meses respondi:
— Sabe que mais? Tem razão! Eu também quero sair daqui!
O silêncio caiu como uma bomba. O Rui apareceu na sala assustado.
— O que se passa?
— Nada — disse eu, pegando na Matilde ao colo. — Só estou cansada de ser tratada como uma empregada nesta casa.
Dona Lurdes ficou vermelha de raiva.
— Se não gostas das regras, a porta está aberta!
Naquela noite não dormi. O Rui tentou acalmar-me:
— Mariana… desculpa pela minha mãe. Ela é assim com toda a gente…
— Não quero que a Matilde cresça neste ambiente — disse-lhe entre lágrimas. — Não quero que ache normal viver com medo de errar.
No dia seguinte comecei a procurar casas para arrendar. O dinheiro era pouco mas já não aguentava mais aquela prisão disfarçada de lar.
Quando finalmente encontramos um pequeno T2 nos subúrbios de Lisboa, senti-me renascer. No dia da mudança, Dona Lurdes nem apareceu para se despedir. O Rui ficou dividido entre nós e ela, mas escolheu vir connosco.
A primeira noite na nossa casa foi silenciosa mas cheia de esperança. A Matilde correu pelos corredores vazios e eu chorei — desta vez de alívio.
Hoje olho para trás e penso em tudo o que vivi naquela casa: as humilhações silenciosas, os olhares julgadores, o medo constante de falhar. Mas também penso na força que ganhei ao lutar pelo meu espaço e pela felicidade da minha filha.
Será que tantas famílias portuguesas vivem assim — presas às regras dos outros por medo ou necessidade? Quantas mulheres perdem quem são só para agradar? E tu… já sentiste que eras apenas uma hóspede na tua própria vida?